sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Crónica | Até vende muito bem…

Passei esta tarde pela loja do árabe ou por aquilo que de memória visual ainda resta dela.

É um destes estabelecimentos privados cujo fecho de portas por falência representa uma amputação colectiva dos munícipes que ali acorriam para adquirir vestuário e calçado de uma linha que não alcança bem o padrão de qualidade ocidental, mas também não chega mentir tanto quanto nos habituou a generosidade chinesa do custo por produto.

Na verdade, já há coisa de uma semana ou talvez pouco mais que vinha pensando em garimpar novidades, depois de ver a porta entreaberta e alguns homens com cara de cimento e tijolo entrando e saindo pela meia-porta.

Devo antecipar-me em reconhecer e possivelmente esclarecer que não há nada de extraordinário no verbo passar, quando o sujeito da frase neste caso sou simplesmente eu. Todo o mundo por ali passa e nem por isso fazem do facto objecto algum de notícia. De facto, não é por aí que o mar vem à terra. A rua é principal, a loja do árabe fica mesmo na berma ali em cima do cruzamento. Além do mais, já vai para aí um ano, se não mais, que aquilo fechou as portas ao público. Ao público e aos funcionários, diga-se. Parece que nem as moscas sequer conseguem entrar, de tão bem encerrado que ficou.

Diz-se por aí, o que também não exige dupla confirmação, de tão evidente, que o comércio ficou acometido pela endemia da evaporação das divisas, e não há o que dividir sem divisas. O coitado do comércio asfixia sem ter dólares para bombear as artérias da importação; que o libanês alheio deve ter trocado o nosso solo por um qualquer destino distante da crise económica em termos mais directos, por uma garantia de previsibilidade. Estou em crer que isto é o que mais deve haver para quem dorme e acorda ruminando leis de mercado.

Mas como ninguém nos proíbe de respirar a esperança, inalei uma boa quantidade dela quanto a uma possível reabertura da loja, mesmo até porque, à parte as portas trancadas e a vitrina opaca de jornais velhos, no resto da identidade visual tudo se mantinha intacto. As cores, a enorme placa do letreiro. Então, mas o que andarão os homens a fazer neste entra e sai mais ou menos discreto? Estarão em retoques de recomeço? Perguntaria você. Não, mano. Vai ser igreja. Igreja mundial.

E pronto. Despedi-me do meu interlocutor, jovem ajudante de pedreiro, com um misto de desilusão e ao mesmo tempo comemoração. Afinal nem tudo vai mal. Ao menos a importação de missionários, brasileiros, não ficou afectada. Há sempre um segmento industrial que sobreviva. Há sempre quem queira comprar. E a fé até vende muito bem…
Gociante Patissa, 29 Setembro 2016
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2 Deixe o seu comentário:

Manuel Luis disse...

Acontece um pouco por todo o lado. Depois, a fragilidade do povo, vai a traz da moda!
Abraço

Angola Debates e Ideias- G. Patissa disse...

É verdade. Uma grande pena, amigo Manuel Luis
Retribuído abraço

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