Há já dois anos que, ao contrário de muitos, o meu dia preferido no
serviço é a segunda-feira, quando cada colega chega e conta como foi o
fim-de-semana… atenua a chatice de desempenhar uma função sem prazer nenhum,
entretanto impotente para optar pelo auto desemprego, qual prostituta apenas
atrás do pagamento.
Esta semana, por exemplo, um dos colegas queixava-se do cansaço físico.
E eu, todo ouvidos, fui agarrado de surpresa ao saber que era devido à «kitota»
(guerrilha). E enquanto o meu lado tendencioso especulava qualquer coisa como
«andar na rosca», lá vinha o desenvolvimento da notícia. «Uma kitota mesmo a
sério… com balas de tinta». Puxei os lábios para trás, como que a sorrir,
enquanto procurava entender o sentimento que me possuía. O colega e amigos
tinham-se divertido a valer, no Vale do Cavaco, brincando às guerras.
Sem estragar o entusiasmo do outro — legítimo aliás para quem andou
envolvido num passatempo radical —, quando dei por mim, já a mente vagueava na
memória de infância.
A nossa vida na comuna do Monte-Belo, antes mesmo de completarmos cinco
anos, resumia-se a duas palavras: uma era brincar e a outra guerra. Atenção,
nunca combinadas! Incluíamos no pólo do brincar coisas como ir à escola,
apanhar gafanhotos, correr atrás de uma jante ou de um arco qualquer que
aparecesse, fazer amizade com soldados (sobretudo os cubanos, que passavam de
quando em vez em colunas para o Huambo). Já no pólo da guerra incluíamos o
cuidado a ter com a manta (o frio era impiedoso no mato, e a noite durante um ataque
parecia nunca mais acabar!), bem como o respeito pela mãe (em cujas costas nos
agarrávamos na hora de fugir).
Foi assim até 1985, quando, por fim, os meus pais se convenceram de que
apenas restava vir ao Lobito, onde era (um pouquinho mais) possível viver. E
lembro-me bem da viagem, de como a minha mãe chegou, de certo modo, a ser
obrigada a esconder-se no frigorífico (desligado, claro, ou eu choraria até
estragar o plano); tudo, porque as forças tinham de impedir que a força
camponesa se evadisse para a cidade.
Voltando à conversa com o colega, as marcas do impacto das balas na
pele enrubescida não deixavam dúvida, ou seja, doía um pouco, mas era a
brincar. Não era nada de verdade, como o é a cicatriz na bochecha da minha mãe,
«tatuagem» do estilo de cauda de lagartixa, desenhada por uma bala «perdida» a
meio da noite, quando ela me trazia às costas… (não fosse a «péssima» pontaria
do atirador, ter-se-ia alojado na minha cabeça o chumbo, e você ficaria livre
da maçada de ler esta crónica.)
Li algures que só se é criança uma vez, sendo os anos mais maravilhosos
da nossa vida. O que o livro não dizia era se havia borracha para fazer
«delete» de certas lembranças. Se hoje, por exemplo, me disserem, «shii,
cala-te, você fala muito!», algo que acho que não gosto muito de ouvir,
automaticamente lembro-me da primeira vez que mo disseram: foi na mata (porque
quem se esconde deve estar calado).
Por que não brincar às guerras, hoje, eu também? Mas será que cheguei
algum dia a desarmar o conceito de guerra? Lembro-me de ter ganho, já no início
da década de noventa, uma metralhadora de brinquedo, preta, coronhada móvel,
bonita mesmo diga-se, de balas plásticas vermelhas. Mas não cheguei a usá-la
porque fazia parte daqueles brinquedos que, sendo nossos de nome, eram para
enfeitar, por isso, bem penduradinhos longe do alcance das crianças (anos
depois, quando me foi entregue, já o mecanismo do gatilho havia ressequido). A
euforia de inaugurar uma arma, como aquela, talvez ajudasse a «familiarizar-me»
com a guerra — bom, agora quem vai saber?!
De qualquer modo, agradeço aos militares e aos políticos! É que, como
dizia o outro, «ninguém, excepto os vermes do cemitério, ganhou com a guerra».
Viva a PAZ, viva Angola!
Gociante Patissa, Aeroporto
Militar da Katombela, 12 Abril 2009. In «O APITO QUE NÃO SE OUVIU», livro de
crónicas com edição em curso e possível publicação no final de 2015
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