Diz o senso comum que cantar é, assim como
chorar e rir, manifestação universal. Isola-se no entanto o dançar, já que,
apesar de ser um inesgotável campo de estudos, quase sempre depende do estímulo
da canção/música/ritmo, digo eu. Daí ter eleito apenas a canção pelo ângulo da
sociocultura do grupo etno-linguístico Ovimbundu.
Como já referido em textos anteriores, a
vivência é um recurso valioso onde a bibliografia escasseia. Recorrerei, pois,
a memórias de infância na comuna do Monte Belo, município do Bocoio, em
Benguela, que abandonei aos sete anos devido à guerra civil. Permitam-me vestir
de aura positiva a máxima de que “se pode tirar a pessoa do mato, e não o mato
da pessoa”, porquanto o conceito “mato” representa, no falar das nossas gentes,
o meio rural e toda a sua mística – não necessariamente a selvajaria.
No “mato” ou kimbo, viver é cantar,
havendo a destacar: (a) o campo da mobilização política e combativa, que não
pode ser ignorado para a rigorosa compreensão da nossa história (fosse do lado
do MPLA movimento, do governo, fosse do lado da Unita); (b) a dimensão social e
antropológica – sobretudo no que à divisão de tarefas respeita –, no palco que
é a pedra onde mulheres transformam milho em fuba, na ausência de moageiras
industriais, ajustando golpes com o “upi” (piso) ao compasso de canções,
quantas vezes a satirizar ou a condenar hábitos e acções (do indivíduo ao
colectivo) com base no sistema de valores do meio, mas; (c) é na oralidade
(batucadas, serão no onjango ou à volta da fogueira) que reside o motivo desta
divagação.
Os contos, marcadamente fantásticos e
melancólicos, só podiam ser partilhados de noite, nunca à luz do dia, sob o
risco de crescerem chifres na cabeça do desobediente. Serviria o dogma para evitar
a preguiça? Alguns deles, hoje, eu os assemelharia a filmes de terror. Havia
também os românticos, os heróicos. Não raras vezes, pedíamos que nos repetissem
essa ou aquela estória durante anos. Não vinham a seco, carregavam sempre uma
canção ou mais que isso – já não sei se não era a canção que as carregava.
As canções são de indefectível harmonia
melódica. Quanto à sua estrutura, o verso não é preocupação, pelo menos não
literalmente como o conhecemos. São a mensagem objectiva e a lição subjacente o
mais importante, onde o fragmentado, a parábola e o provérbio coabitam com o
estilo canta-autor. Alguns nomes da música transportaram para
discos a tradição, quer no conteúdo, quer na forma. É certo que a linha é ténue
entre intervenção e tradição oral não engajada. Está aqui em causa o estilo
corrido de narrar. Falemos a seguir de quatro nomes do planalto central (Huambo
e Bié).
Zé Katchiungo, que se notabilizou pela
música de resistência (na Jamba), é exímio contador de estórias e provérbios em
tons bem dançantes, como são exemplos “ucinje
uti wovava” e “ocikoko”. Bessa
Teixeira é mais conhecido pela reedição de cantares populares do que por temas originais.
Justino Handanga é outra pedra-angular, cuja marca é o cruzamento entre a recolha
e o retrato social em prol dos mais desfavorecidos.
Por sua vez, Viñi-Viñi [cuja alcunha significa
“Etc., Etc.], já falecido, narra peripécias de um contratado nas minas de ouro
de Transvaal, à época colonial, bem como a humilhação que é a guerra: “Trititi,
não chores mais/ porque o papá/ não tem pão/ para te dar/ (…) hu kalile vali,
Ota, ndakava” [não chores mais, querido, estou cansado], sendo que “Trititi”, o
nome da criança-personagem, é onomatopeia do ritmo de balas.
Ainda entre os consagrados, realce para Jacinto
Tchipa, Sabino Henda e Flay, este último que tem incorporado em média uma
música da nossa tradição em cada álbum, o que é pouco. Já o Ndaka Yo Wiñi,
radicado em Luanda, bem como o Sukumunlã e o Kupeletela, de Benguela, são cantores
e compositores cuja realização tarda tão-só pela miopia dos holofotes, tão focados
no dançante, efémero e oco electrónico. Temos aqui os mais representativos
continuadores, pelo que seria triste vê-los desistirem.
Os veteranos José Viola, César Cangue e
Joaquim Viola, ligados à Rádio Nacional de Angola, têm lugar cativo na memória
colectiva. “A monlange/ ku lilelile/
nyõhõ walinga ociwaya/ omangu yovowotele/ ka kuli u ka tumãla ko” [meu
filho/ não chores/ a tua mãe tornou-se vadia/ cadeira de hotel/ não há quem lá
não se sente], (Cangue); “Ame ame
Ciyunge/ vatucita kavali/ Ciyunge/ vatutuma
olongombe/ ove ekumbi lyainda” [Eu
sou a Ciyunge/ Somos dois irmãos só/ mandam-nos pastar o gado/ quando já se pôs
o sol], (de Joaquim Viola e reinterpretado pelas Jingas). Junta-se a eles o Fedy,
autor do sucesso “Kalupeteka”, que muito contribuiu para a reconciliação
nacional.
Vozes femininas são esporádicas. Surgiu
Mila Melo com rapsódia nos anos 90. Há duas décadas surgiram Bela Chicola e
Pérola. Patrícia Faria recuperou “Katalina”, do trecho “ka kwelele ongongo ka yilete” [quem nunca se casou não sabe o que
é sofrer]. Kassova, de Benguela, e Edna Mateia, do Huambo, destacaram-se nos
últimos anos enquanto vencedoras do concurso “Variante” em suas províncias. Há
que segurá-las.
"Olohombo
kepya/ kepya/ olomalanga vimbo/ Aci fu/ Aci mbê/ Avoyo/ twendainda
ndeti". Este trecho é de uma dança folclórica em roda de mãos dadas, girando aos
pulos num sentido, logo invertido mediante a lógica da mensagem quando se
disser "twendainda ndeti" [o
normal é irmos assim]. Segundo o Duo Canhoto, compilador da rapsódia "Omboyo" [o comboio], que
ganhou maior visibilidade depois de ganhar de cantora Pérola uma roupagem
comercial, a essência da parábola é: numa comunidade em guerra, os paradigmas
funcionam de maneira inversa, onde, literalmente, os cabritos ficam na lavra, ao
passo que as palancas ficam na aldeia. Trata-se de mais uma manifestação dos
nossos antepassados contra a desordem inerente a lutas e conflitos.
Há entretanto uma canção, também absorvida
em pequeno, que desperta curiosidade pela preocupação que parece residir na
concepção quanto ao ritmo e métrica. Cantada é ainda melhor, mas fiquemos pelo
texto apenas, o único meio possível aqui:
Ondumbu wéh [lá o leão]/ Yalya,
yalya, yamãlã [devorou a tudo e todos]/ Kulo ka yipitilã [aqui,
porém, não chega]/ Ame wéh [eu cá] / Ndaimba
odunge ocilavi [confio no material com que fiz o cerco] / Ondumbu yipita pi? [onde é
que irá passar o leão?]
Termino, portanto, com duas perguntas de
retórica: terá havido influência de algum “missionário” ocidental para a
estética da rima? Pois não nos parece ser casual esta elaboração. Quando foi
que surgiu a fábula desta canção atribuída à lebre?
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