segunda-feira, 30 de junho de 2014
domingo, 29 de junho de 2014
A convite do kota Lauriano Tchoia, tive uma tarde agradável de música ao vivo e intercâmbio em Catete, num estabelecimento hoteleiro que acolheu o show de Livonge e amigos. O percurso de ida fez-se na viatura do músico Gabriel Tchiema, com ele ao volante, com quem aliás partilho a causa da recolha de tradição oral. Obrigado, precisava de momentos assim!
sábado, 28 de junho de 2014
Diário: A BABA DA PROF
"A minha filha estuda terceira e está uma
viva do cara***. Ela entra no whatsup e te vasculha aquilo que... não
acreditas! A professora até, quando fala dela, baba!"
Diário: À MESA DE BAR DE OLHOS PARA O MUSSULO
"Há casamentos e casamentos. O da fulana
não pode ser considerado de sonhos, porque não é ela que paga. Eu sou muito
justo. Em termos de luxo, ainda não vi casamento onde houvesse tudo o que no
meu houve. Aquilo era almoço, jantar e por aí fora. Os convidados foram-se
depois da meia-noite porque quiseram; podiam comer e beber até de manhã,
e tudo pago!"
O PORTUGUÊS TEM DE DIALOGAR! - A convite do Semanário Angolense, na pessoa do seu director, contribuí com um artigo na edição que assinala os 800 anos da língua portuguesa
Falar
do futuro do português, o considerado quinto idioma mais popular no mundo, é
evidentemente um assunto vasto. Enquanto recolector de tradição oral,
interessa-me olhar para a realidade angolana e abraçar a vertente sociolinguística,
visto o valor da língua como património cultural imaterial. A propósito, há quem
defenda a existência de um tal português angolano. Temos? Sobre isso
continuaremos mais adiante.
Não
havendo grandes estudos oficiais no que se refere a políticas linguísticas na
Angola independente, a partir dos quais teríamos indicadores para avaliar
eventuais êxitos ou desvios na sua aplicação, resta assumir que qualquer
exercício de previsibilidade do uso do português é ainda mais complexo. E já
sabemos que nem valem a pena incursões ao passado, conhecendo como conhecemos a
história da chegada da língua, que era até há bem pouco menos de 40 anos
instrumento de aniquilação identitária dos povos das então colónias
portuguesas, a coberto de uma tal expansão da civilização europeia.
Adoptado
o português como idioma oficial, que é inquestionavelmente a língua materna de
milhares de angolanos, a questão passa a ser a forma como esta dialoga com os
demais idiomas de matriz africana, entre Bantu e não Bantu, nomeadamente o cokwe,
fiote, helelo, khoisan, kikongo, kimbundu, ngangela, nhaneka-nkumbi, umbundu,
oxindonga, oxiwambo, e o vátwa. E se o leitor nos permite problematizar um
pouco sob o axioma de que cada língua veicula uma cultura, a questão seria: que
cultura veicula a língua portuguesa numa sociedade multi-étnica e linguística?
Bem, é em nome da cultura, que é por vocação um fruto da partilha, que teremos
de evitar radicalismos e complexos, sejam eles de inferioridade ou de
superioridade, pois as sociedades são dinâmicas e o fenómeno linguístico é
inerente à interação dos povos.
Quando
falamos do diálogo que deve existir entre as línguas, é tendo precisamente em
conta o cuidado necessário para que o status dado a uma língua, que geralmente
corresponde a determinado grupo social, não represente a subjugação de outros.
Em tempos, um notável intelectual desabafava pelo que interpretava como sendo
um sinal da subalternização institucional das nossas línguas nacionais. Não lhe
pareceria, pois, razoável a prática de haver sempre um tradutor para
estrangeiros que falem à imprensa ou ao parlamento e, entretanto, quando chega
a vez de anciãos e autoridades tradicionais, terem de o fazer num português em que
por vezes mal se expressam e compreendem, com todo o desconforto que isso
implica.
Como
defendeu em 2003 a brasileira Eveli Sengafredo, na tese de pós-graduação em
Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, “a língua constitui-se
das mesmas forças políticas, sociais e culturais que produziram as diversas
civilizações e culturas do mundo. Ela ocupa uma crucial posição na interacção
social, sendo um agente importantíssimo de transmissão de valores sociais e
culturais”.
Já
existe o português angolano? Há quem defenda que sim, mesmo até com base na
linguagem literária que incorpora cada vez mais termos e expressões tipicamente
do nosso linguajar, como por exemplo, “é maka grossa me apanhar a pata”. Mas
isto basta para legitimar a existência de uma variante angolana? Como
caracterizar a pronúncia padrão dos locutores noticiosos, o sotaque europeu? O
certo é que o português angolano não existe, tão-só porque não se estabeleceu
uma norma própria, oficial.
O
futuro do português, quanto a mim, passa por assumir de maneira integradora o
seu papel de língua oficial relativamente às outras de matriz africana.
Impõe-se um rigoroso trabalho de estudos linguísticos e antropológicos, de modo a valorizar a correcta grafia da toponímia e a essência proverbial dos nomes
africanos. Insistir-se na substituição forçosa do “K” pelo “C”, mesmo quando se
trata de algo tão representativo como o rio Kwanza ou a província do
Kwando-Kubango, pelo magro argumento das confusões por a língua oficial ser
avessa às consoantes “K, W, Y”, tão comuns nas línguas Bantu, só vai atrair
ainda mais recalcamentos. O português tem de dialogar!
Gociante
Patissa, Luanda 25 Junho 2014 (licenciado em linguística, especialidade de
inglês)
quinta-feira, 26 de junho de 2014
Diário: NÃO SE METE SÓ
"Ontem dormi mal, não sei se havia festa
ou quê, estava muito alta a música?"
"Ah é? Eu por
acaso ouvi assim de longe."
"Já depois da
meia-noite, tive de ligar para a recepção a reclamar. Umas duas vezes. Era na
porta ao lado."
"Meu mano,
aqui, você não se mete só. É terra de stress, cada um arranja variante para
relaxar."
"E falavam
alto pelo corredor. Ainda por cima, a música era uma só, que repetia o tempo
todo."
"Ai, se fossem
muitas músicas você não se incomodava?"
"Não seja por
isso, eles preenchiam as pausas com aplausos e gritaria."
"Nesse caso,
você não liga só. Arranja algodão e coloca no ouvido... e dorme"
Fim de tarde
Mora-se longe, não distante, longe se fez a
outra ponta de um mesmo lugar. Horas sobre rodas aleijam, onde um cágado era
mais expedito. À procura de uma mentira... amanhã ao menos é diferente?
terça-feira, 24 de junho de 2014
Diário
É uma hospedaria com condições de conforto pela
mediana, apenas fora do seu tempo e meio, talvez. Lembra o mamão, espaçoso e
terno por dentro, nulo por fora. Descampado e falidas pretensões de obra ao
redor, escuridão e capim. A calçada, impecável esteira de betão, pode dar para
tudo... e a agenda noticiosa é já ali. Mas há que ressaltar a postura a século
vinte e dois da casa, trata todo o hóspede por Doutor!
segunda-feira, 23 de junho de 2014
Não deixe de ler na 59ª edição do Jornal Cultura, de 23/06/14, o ensaio Oratura: «ULONGA», A SAUDAÇÃO ENQUANTO INSTITUIÇÃO NA SOCIOLINGUÍSTICA UMBUNDU
Da casa de um primo seu fazendeiro no
Dombe-Grande, o meu pai voltara com arranhões e o bolso da camisa rasgado. A
saudade fora tão grande que, à chegada, partiu para um efusivo abraço, gesto que
o cão de guarda tomou por agressão ao seu amo, acostumado à regra de se sentar
primeiro e saudar depois. Assim é com os Va Cisanji.
Num universo marcado pela exiguidade
bibliográfica na recolha da tradição oral, os rígidos preceitos científicos não
são propriamente a nossa tenção. Não abdicamos é de contribuir com vivências,
ainda que o façamos com a regularidade de um vaga-lume.
domingo, 22 de junho de 2014
Trecho
"Eu sei o que isso é. A mulher vai
aparecer outra vez nesta rua. Aí, então, ele atira-a para o quintal e fecha as
portas. E dessa vez é a morte quem perde. Só que ele se engana um pouco num
ponto: não é no muro alto a victória, é na vontade dele" (trecho do conto
O Engenheiro, in FÁTUSSENGÓLA, O HOMEM DO RÁDIO QUE ESPALHAVA , livro de contos
com grandes hipóteses de sair ainda este ano)
sexta-feira, 20 de junho de 2014
Citação
"O maior dos perigos do nosso tempo não é
não haver respostas para os problemas; o maior perigo do nosso tempo é já não
colocarmos as grandes perguntas" - Padre Anselmo Vieira, português, 69
anos, entrevista à RTP Internacional, 20 Junho 2014
quinta-feira, 19 de junho de 2014
quarta-feira, 18 de junho de 2014
terça-feira, 17 de junho de 2014
Diário: O QUE TÊM OS ESCRITORES (AFRICANOS) DE MOÇAMBIQUE CONTRA A DIVULGAÇÃO VIA VÍDEO?
A minha nova etapa de pesquisa passa por
descarregar do youtube vídeos de entrevistas (e documentários) a escritores.
Depois de alguns nomes de Angola, Portugal, Brasil e Colômbia, dediquei horas
no youtube na ânsia de ouvir algum escriba da Terra de Samora, com tudo de
tradição oral e idiossincrasia africana que isso implica. Nada! Quer dizer,
exceptuando uma reportagem de canal brasileiro a respeito de José Craveirinha
em conjunto com alguns nomes de Cabo-verde.
segunda-feira, 16 de junho de 2014
E no parque da Chimalavera...
Cliente: Bom dia, companheiro.
Guarda: Bom dia, bom dia!
Cliente: Isso está fechado ou quê?
Guarda: A recepção e o restaurante fecham segunda, só abrem quarta-feira. Mas o parque é que está aberto.
Cliente: E como é feita a exploração?
Guarda: Paga-se mil kwanzas e vai.
Cliente: E o transporte?
Guarda: Usa mesmo carro pessoal, o nosso neste momento saiu.
Cliente: Pois, mas o visitante não conhece isso.
Guarda: Vai com um guia. É só que este teu carro não dá, é um pouco baixo.
Cliente: Então, quais são os dias em que a vossa viatura está disponível?
Guarda: É mais aos fins-de-semana.
Cliente: Obrigado, bom trabalho.
Guarda: Valeu, irmão.
Guarda: Bom dia, bom dia!
Cliente: Isso está fechado ou quê?
Guarda: A recepção e o restaurante fecham segunda, só abrem quarta-feira. Mas o parque é que está aberto.
Cliente: E como é feita a exploração?
Guarda: Paga-se mil kwanzas e vai.
Cliente: E o transporte?
Guarda: Usa mesmo carro pessoal, o nosso neste momento saiu.
Cliente: Pois, mas o visitante não conhece isso.
Guarda: Vai com um guia. É só que este teu carro não dá, é um pouco baixo.
Cliente: Então, quais são os dias em que a vossa viatura está disponível?
Guarda: É mais aos fins-de-semana.
Cliente: Obrigado, bom trabalho.
Guarda: Valeu, irmão.
sábado, 14 de junho de 2014
Diário: AINDA O "PARASITISMO" NA RIBALTA MUSICAL ANGOLANA
Tony do Fumo Júnior foi alvo de crítica
positiva do Semanário Angolense, num artigo do veterano jornalista Salas
Neto, o director, na
sequência de um reparo manifestado pelo veterano músico Prado Paim, estando na
base a preguiça de jovens músicos que se agarram aos conteúdos de outro tempo
para brilharem, às vezes, sem a elementar observância dos direitos autorais. Nas suas aparições, ressalta o
redactor, o jovem nunca passa de interpretar temas do pai, quando era já altura
de mostrar algo seu, original. Na minha condição de leitor, já não sei se o que
é pior, se o show de Edy Tussa com o tema "monami", por exemplo, inserto no disco
Picante, de Dias Rodrigues, ou se o rapaz agarrar-se a um repertório que é do
próprio pai.
sexta-feira, 13 de junho de 2014
quarta-feira, 11 de junho de 2014
Oratura: «ULONGA», A SAUDAÇÃO ENQUANTO INSTITUIÇÃO NA SOCIOLINGUÍSTICA UMBUNDU
curiosidade: a região é rica na cultura do abacaxi |
Da casa de um primo seu fazendeiro no
Dombe-Grande, o meu pai voltara com arranhões e o bolso da camisa rasgado. A saudade
fora tão grande que, à chegada, partiu para um efusivo abraço, gesto que o cão de
guarda tomou por agressão ao seu amo, acostumado à regra de se sentar primeiro e
saudar depois. Assim é com os Va Cisanji.
Num universo marcado pela exiguidade
bibliográfica na recolha da tradição oral, os rígidos preceitos científicos não
são propriamente a nossa tenção. Não abdicamos é de contribuir com vivências,
ainda que o façamos com a regularidade de um vaga-lume.
Tornando à cena do visitante agredido. Passa-se
que tanto este como o anfitrião são de uma localidade culturalmente fronteiriça
entre os municípios de Balombo e Bocoio, encaixada administrativamente no
último. Dista cerca de 170 Km a nordeste da capital da província de
Benguela, território com predominância da etnia Ovimbundu e que se comunica na
língua Umbundu, representando 1/3 da população — estatísticas
avulsas —
e abrange as províncias do Kwanza-Sul, Benguela e Namibe (costa), Bié, Huambo e
Huila (planalto centro e sul).
Segundo Fernandes & Ntondo (2002), referidos
em Kavaya[1]
(2006: 54), formam o grupo os va Viye, Mbalundu, Sele, Sumbi, Mbwei,
Vatchisandji, Lumbu, Vandombe, Vahanya, Vanganda, Vatchiyaka, Wambu, Sambu,
Kakonda, Tchicuma, o maior etnolinguístico angolano (acima de 4.500.000
pessoas). Quanto à etimologia, Arjago[2]
(2002: 23) sugere que foram apelidados, “pelos povos encontrados, de vakwambundu, o que significa gente vinda
das zonas de nevoeiro, tratando-se do litoral”.
Nestes subgrupos, cada encontro, por simples
que seja, representa provavelmente uma oportunidade de inventariar a vida, sem preocupações
relativas à economia do tempo. «Okwimbwisa
ulonga», fazer a saudação, é um longo relato da situação familiar e
introduzir o motivo do encontro, desde o último contacto, cobrindo depois o social,
o económico e o político. A linguagem é coloquial e inevitavelmente proverbial.
Como veremos adiante, entre os Va Cisanji, a «ulonga» é ainda mais minuciosa. Podemos concluir esta fase
generalista com a certeza de que é ao bem-estar que se aponta.
Do Bocoio, a
minúcia da «ulonga» é norma nas demais quatro comunas:
Monte-Belo, originalmente Utwe Wombwa (cabeça de cão), Chila (de Ocila,
palco, pista), Cubal-do-Lumbo (de Kuvale Kwelumbu, Cubal Mágico) e Passe
(Epasi). O chefe do lar é o interlocutor exclusivo. Nos meios mais conservadores,
acomoda-se o hóspede sem diálogo quase nenhum, enquanto alguém vai buscar o
interlocutor. Na impossibilidade, é substituído pela esposa e, na ausência
desta, pelo descendente mais-velho. É sempre o mais-novo (inferior hierárquico por
idade, grau de parentesco, cargo) quem começa a contar o estado de saúde, sendo
facultativa a pergunta. Se o mais-velho começa a explicar, é sinal para o inferior
distraído o interromper.
Eis algumas passagens
de diversas «ulonga». (a) Dialéctica: “Etu
vo, mumosi haimo. Tulinga tuti vamwe vatokota, vamwe vapola. Apa mbi omãlã omo
vakulila, etu twakulu omo tukukila” (Connosco é igual. Uns quentes/doentes,
outros frios/com saúde. Se calhar é o jeito de nós, os mais velhos, envelhecermos
e os mais novos crescerem); (b) Fome: “Twalale,
omo mwenle apa omo… Etaili, okulikwata komenlã, oco okusuyako” (A noite passou-se,
enfim… Hoje, levar a mão à boca, só se for para coçá-la); (c) Insegurança: “Wangombe, apamba lilu” (ao jeito do
boi, os chifres em riste); (d) Aflição: “Wambwa,
kwatwim kuliwa” (ao jeito do cão, as orelhas sendo roídas).
Resumindo, «Okwimbwisa ulonga», a saudação a preceito, é uma instituição entre
os Ovimbundu, constituindo na tribo Ocisanji uma afronta ser questionado pelo
mais-novo sobre o estado de saúde, e como tal choque de cultura na interacção até
com povos vizinhos.
Gociante Patissa, Benguela, 11 de
Junho de 2014
terça-feira, 10 de junho de 2014
Diário: UM PEQUENO PUNIDOR
No calçadão da praia morena onde aguardo pela
ligação da estação de serviço, estou sentado um pouco distante de dois jovens,
mas próximo o suficiente para captar o que dizem. Um, que aparenta ter 22 anos,
sacou dessas pastas de computador a sua pequena Bíblia. O outro, um pouquinho
mais novo, é zungueiro de CD pirateados. O primeiro fala mais, é pregador. O
segundo está o tempo todo de braços cruzados, preenchendo de vez em quando
as propositadas lacunas do pregador. Este, por sua vez, tem uma criteriosa selecção
de versículos, os quais apresenta num tom de "já devias saber". O
zungueiro olha agora para o relógio do telemóvel, olha para o lado mas
permanece sentado. Faz agora alguns apontamentos, cuidando o pregador de falar
dos que têm olhos mas não vêem, têm ouvidos mas não ouvem, etc. Ah, e para que
não restem dúvidas, questiona em que parte da Bíblia está escrito isso de
adorar estátuas e bonecos. Claro que não está, remata o pregador, é perder
tempo pedir ainda através da mãe Maria... Jesus basta! Tudo indica que o jovem
foi preparado numa oratória punitiva.
segunda-feira, 9 de junho de 2014
Crónica: AS PARTIDAS DO ELISEU
A pior
das partidas que nos pode alguém chegado pregar é, certamente, partir.
Eliseu
Mondi Pedro Figueiredo confunde-se com a língua inglesa, à qual viria a dedicar
duas décadas de auto-didactismo, chegando a dar aulas no terceiro nível dos
Bambus na Catumbela, onde residia, e mais tarde no católico Instituto de
Ciências Religiosas de Angola (ICRA), no bairro da Caponte, Lobito, onde veio a
residir. O extrovertido, criativo e brincalhão Mr. Elisha (pronunciado /elitsha/)
abraçou o inglês por influência do irmão mais velho, dos poucos tradutores benguelenses
no contexto de emergência, resultante do fracasso eleitoral de 1992, a época
dourada da ONU e demais agências internacionais de caridade.
Já
na sexta classe, dava o Eliseu nas vistas pelo vício das contagens em voz alta,
qual récita a Shakespeare, pelos corredores da escola Comandante Dangereux, na
Catumbela. E pregava bwé de partidas aos colegas, eles que mal sabiam o que era
o verbo “To Be”. De sorte que quando o conheci na sétima classe, onde começava o
ensino de inglês antes de surgir essa coisa chamada de reforma educativa, foi
com o inevitável receio de lidar com ele, pois era reinante o espírito de
competição entre os falantes. A empatia foi à primeira vista!
De
carteira acabamos sendo colegas até ao primeiro ano do ensino médio, optando
pelo curso de ciências sociais no Centro Pré-Universitário (PUNIV) do Lobito. O
Eliseu pregaria outra partida a professores e alunos com uma suposta habilidade
em conjugar o “To Be” na língua Umbundu, quando na verdade dizia o verbo
defecar. E ria-se, para o meu desgosto.
Estamos
em 1996 e eu, que gozava já de certa notoriedade mediática por colaborar num programa
infanto-juvenil da TPA, não via como continuar os estudos. Como se não bastasse
andar de ténis com a sola gasta ao ponto de o polegar beijar o chão, impunha-me
o professor Barros um ultimato; não tolerava o bloco de facturas para os
apontamentos do seu sagrado português. Só podia ser indisciplina, acreditava
ele. Por seu turno, o professor Kupuiya, com quem me havia incompatibilizado pela
imaturidade com que o corrigia em plena aula, decidira ser pai; isentou-me de
pagar as folhas de prova de inglês. Como compensação, eu partilhava com ele jornais
e livritos que me chegavam por correspondência. Mas… e as outras provas? Eram dez
disciplinas, e o Eliseu decidiu custeá-las. Custeava de vez em quando um lanche
na cantina da professora Belinha. Ofertou-me também uma camisola.
Bem,
depois de o agradecer no meu livro de estreia, Consulado do Vazio, entendi metê-lo
num livro de crónicas que a União dos Escritores Angolanos tem em edição. «O
contacto com os capacetes azuis era fruto proibido em certos quarteis.
Recordo-me de quando o Eliseu viu o seu negócio retido no Hotel Términus. Mais
conversa, menos conversa, prometeu-se subornar o guarda angolano, penhorando o
Bilhete de Identidade. Parvo do guarda, já que ficava sempre mais fácil tratar
outra via do documento».
Julgava-se
no direito de arranjar um emprego que prestigiasse a minha vocação e aptidão. Há
dois meses, falou-me da oportunidade numa promissora multinacional japonesa no
Huambo como tradutor e assessor de comunicação. Fiquei à espera de mais dados. E
o Eliseu foi hoje a enterrar, derrotado por um estado de saúde que há muito titubeava.
Ninguém faz ideia dos últimos suspiros do homem. Espero que tenham sido sob um
sonho com diálogos em inglês. Seja como for, Eliseu, não te perdoo essa partida
de partires!
Gociante
Patissa, Lobito 9 Junho 2014
Vende-se um Ford Figo ambient em muito bom estado (62 mil km). Ano de fabrico 2012. Seguro contra todos os riscos até 31 de Novembro 2014. Título de propriedade, livrete e taxa de circulação em dia. O preço? Vem a melhor parte... menos de dez mil dólares. Mais info em mensagem privada. Passe a palavra
domingo, 8 de junho de 2014
Diário: BREVE PARAGEM À SOMBRA DE UMA ÁRVORE QUE NÃO SE IMAGINA MULEMBA
A vida, esse museu interactivo de incontáveis
emoções, costuma ser de inquietações, também elas, incontáveis. Ora, se fosse
só isso, bem podíamos considerar o sintoma como estando localizado. Sim,
porque, agora que falamos de localizações, sendo binária a memória humana, como
que a lapa às pedras, anda tudo agarrado ao tempo e ao lugar. Algumas
localidades visitámo-las, quase sempre por lá termos mortos e vivos, quer
humanos, quer fauna e flora paisagísticas. Entretanto, é no inverso, quando
somos os visitados pelo lugar, que nos damos conta de andarmos com a indelével
marca entranhada na pele. Geralmente é a saudade no comando, por um reencontro
tão-só impossível ou pode-se dar o caso, não menos profundo, de a alma buscar proximidade
com a identidade, afinal a humanidade mais não é que uma busca, às vezes cega,
da noção de pertença. Mas incompreensível, como sabe a natureza ser, há quem
com frequência volte a lugares que despertem em si principalmente a revolta. E
eu venho à Baía Farta há por aí uma década. Não adianta, ela sabe onde estou.
Gociante Patissa 08.06.14
sábado, 7 de junho de 2014
Cozeduras
"Os livros saem sempre com grande atraso
entre a altura em que termina a escrita e a chegada ao público, geralmente um a
dois anos". António Lobo Antunes, escritor português, ao canal Sic
Notícias, 2013
PS: E calha, acrescento eu, que as demoras se cruzam e, por exemplo, três editoras diferentes colocam no mercado ao mesmo tempo obras de um mesmo autor ou autora, embora uma tivesse sido aprovada em 2012, outra em 2013 e a terceira ficado pronta em 2011. Resultado, arrisca-se o escritor ou escritora a passar uma ideia de estar a publicar demais
sexta-feira, 6 de junho de 2014
Concurso relâmpago: QUER GANHAR UM EXEMPLAR DO LIVRO GUARDANAPO DE PAPEL?
Muito simples. Basta provar que você possui os
três livros até agora lançados por Gociante Patissa, designadamente, Consulado
do Vazio (poesia, KAT 2008) , A Última Ouvinte (contos, UEA 2010), e Não Tem Pernas o Tempo (novela, UEA 2010).
Não tem os livros mas tem o Boletim "A Voz do Olho", de que o autor
foi editor entre 2006-2010? Também vale. Junte então quatro edições e já está.
Enquanto aguardamos pela chegada de exemplares para o acto de lançamento do
livro Guardanapo de Papel (poesia, NósSomos 2014), você pode habilitar-se a
ganhar o seu exemplar. Mbora tentar?! Obrigado
PS: Uma pista: O livro Consulado do Vazio está
disponível na livraria Sucam, defronte ao Bar Ferreira. Já o Não Tem Pernas o
Tempo está à venda na Tabacaria Grilo. Bem, com pelo menos dois, já podemos
repensar a possibilidade de atribuição
Retrato
"Em todo o mundo, os pobres têm essa
estranha mania de morrerem muito. Um dos mistérios dos lares famintos é
falecerem tantos parentes e a família aumentar cada vez mais" - Mia Couto,
in Contos do Nascer da Terra, pág. 13. Caminho, Portugal. 2009
quinta-feira, 5 de junho de 2014
"NDA OMÕLÃ OLILILA OMOKO YOPUTO, OVE UYAVELA! [ECI YUTETA, EYE MWENLE]" (adágio Umbundu)
"NDA OMÕLÃ OLILILA OMOKO YOPUTO, OVE
UYAVELA! [ECI YUTETA, EYE MWENLE]" (adágio Umbundu) - Se a criança chora
por uma navalha, dá-lha. [Quando se ferir, terá sido por ela mesma]
Explicação: Se o orgulho impede a pessoa de ouvir conselhos, há que deixá-la com as suas escolhas. O arrependimento vem mais tarde com as consequências.
Explicação: Se o orgulho impede a pessoa de ouvir conselhos, há que deixá-la com as suas escolhas. O arrependimento vem mais tarde com as consequências.
Tese
"Eu entrei para o periodismo [jornalismo]
porque eu considerava que o assunto não era de literatura, o assunto era contar
coisas. E que, dentro desta concepção, o periodismo, há que considerá-lo como
um género literário (...) Nenhum periodista quer aceitar que a reportagem é um
género literário e, inclusive no fundo de sua alma, o vêem com um certo
menosprezo. E eu diria uma coisa: uma reportagem é um conto totalmente fundado
na realidade, como o conto tem imagens da realidade na ficção. Nenhuma ficção é
totalmente inventada; sempre são elaborações da experiência" - Gabriel
Garcia Marquez, escritor colombiano, documentário intitulado "La escrita
embrujada". Disponível no youtube a 04.06.14
quarta-feira, 4 de junho de 2014
citação
"No fundo, um livro não é mais que um
delírio articulado, um delírio coerente. Tem que avançar implacavelmente"
- António Lobo Antunes, escritor português, em entrevista ao canal Sic
Notícias, 2013
terça-feira, 3 de junho de 2014
Fragmentos
"Mas não se pode esquecer que, como sistema,
o colonialismo era intrínseca e necessariamente racista (...) A maioria negra
foi sempre profunda e estruturalmente discriminada, pois, se não o fosse, o
colonialismo não teria condições para se manter (...) implica entender que o
racismo é uma questão sistémica e não pessoal, pelo que o combate contra os
fundamentos e os processos deste sistema e não contra as pessoas deve ser o
foco do anti-racismo".
João Melo, in "O homem que não tira o
palito da boca", pág. 42. Editorial Nzila, Luanda. 2009.
segunda-feira, 2 de junho de 2014
domingo, 1 de junho de 2014
À MÃO MORENA DO CHÃO
Lá longe, bem longe
desfilam sonhos
pintados
sobre a tábua côncava
uma vela difusa
a mesma vontade de chegar
Do lado de cá
colhe o chão
a semente
lençol de asteriscos
oh casuarinas
o mar guarda o céu
as águas os encontros
estes a vida
Correm as horas
a mesa partida e chegada
para lá do sombreiro
amanhã é regresso
à mão deste chão
desfilam sonhos
pintados
sobre a tábua côncava
uma vela difusa
a mesma vontade de chegar
Do lado de cá
colhe o chão
a semente
lençol de asteriscos
oh casuarinas
o mar guarda o céu
as águas os encontros
estes a vida
Correm as horas
a mesa partida e chegada
para lá do sombreiro
amanhã é regresso
à mão deste chão
Gociante Patissa, 27 Março 2014
Nota: Por gentil convite da TPA Benguela, dirigida pelo sempre afável Florêncio André, duas profissionais levaram-me à Praia Morena, enquanto cenário de entrevista para um programa em carteira. Um dos desafios da dupla Deolinda Catrongo (repórter) e Dezilda Neves (produtora) era rabiscar um poema de improviso para a emblemática praia. O título inicial era "Diário à Praia Morena", que agora substituí pelo actual, na sempre busca por imagens menos gastas.
Nota: Por gentil convite da TPA Benguela, dirigida pelo sempre afável Florêncio André, duas profissionais levaram-me à Praia Morena, enquanto cenário de entrevista para um programa em carteira. Um dos desafios da dupla Deolinda Catrongo (repórter) e Dezilda Neves (produtora) era rabiscar um poema de improviso para a emblemática praia. O título inicial era "Diário à Praia Morena", que agora substituí pelo actual, na sempre busca por imagens menos gastas.
Diário: COMO SE O CABELO DEPENDESSE DA UNHA
Está entre nós o escritor fulano de tal,
anunciava ontem o escritor anfitrião do recital, que de seguida acrescenta:
chegou atrasado, mas chegou; obrigado por vires. Sentado na plateia, levanto as
mãos em instintivo gesto socialista, como criança que marca presença na sala de
aulas, auxiliado por breve sorriso. Pouco depois, aproxima-se um jovem sentado a poucos metros do meu lugar, mão estendida para o aperto que, entretanto,
tem de esperar, pelo menos até eu poisar a máquina fotográfica. É o kota
fulano? Sim, correspondendo, ciente de que ele próprio não acreditaria se lhe
dissesse o contrário. Parabéns, meu kota, pelo teu livro! Até, se eu soubesse
que vinha, ia trazer o livro para assinares. Não há problema, tranquilizo-o,
outras oportunidades surgirão. Obrigado por gostares, concluo, com secreta
vontade de ficar a conversa por ali, pois o papo paralelo distraía-me do
principal, o recital e a trova. Foi então que quase não acreditei no que vinha
a caminho: enquanto o kota não assinar, não vou acabar de ler o teu livro.
Sorri e garanti que ficaria resolvido em breve. E tenho pensado cá comigo: à
parte o facto de pertenceram ao mesmo corpo humano, o que tem o cabelo a ver
com a unha? Em que medida condiciona um simples autógrafo à leitura de um
livro? Bem, seja como for, aprendemos todos os dias com os nossos estimados
leitores. Bom dia, bom domingo a todos e todas!
Gociante Patissa, Benguela 01.06.14
Gociante Patissa, Benguela 01.06.14