segunda-feira, 9 de junho de 2014

Crónica: AS PARTIDAS DO ELISEU

A pior das partidas que nos pode alguém chegado pregar é, certamente, partir.

Eliseu Mondi Pedro Figueiredo confunde-se com a língua inglesa, à qual viria a dedicar duas décadas de auto-didactismo, chegando a dar aulas no terceiro nível dos Bambus na Catumbela, onde residia, e mais tarde no católico Instituto de Ciências Religiosas de Angola (ICRA), no bairro da Caponte, Lobito, onde veio a residir. O extrovertido, criativo e brincalhão Mr. Elisha (pronunciado /elitsha/) abraçou o inglês por influência do irmão mais velho, dos poucos tradutores benguelenses no contexto de emergência, resultante do fracasso eleitoral de 1992, a época dourada da ONU e demais agências internacionais de caridade.

Já na sexta classe, dava o Eliseu nas vistas pelo vício das contagens em voz alta, qual récita a Shakespeare, pelos corredores da escola Comandante Dangereux, na Catumbela. E pregava bwé de partidas aos colegas, eles que mal sabiam o que era o verbo “To Be”. De sorte que quando o conheci na sétima classe, onde começava o ensino de inglês antes de surgir essa coisa chamada de reforma educativa, foi com o inevitável receio de lidar com ele, pois era reinante o espírito de competição entre os falantes. A empatia foi à primeira vista!

De carteira acabamos sendo colegas até ao primeiro ano do ensino médio, optando pelo curso de ciências sociais no Centro Pré-Universitário (PUNIV) do Lobito. O Eliseu pregaria outra partida a professores e alunos com uma suposta habilidade em conjugar o “To Be” na língua Umbundu, quando na verdade dizia o verbo defecar. E ria-se, para o meu desgosto.

Estamos em 1996 e eu, que gozava já de certa notoriedade mediática por colaborar num programa infanto-juvenil da TPA, não via como continuar os estudos. Como se não bastasse andar de ténis com a sola gasta ao ponto de o polegar beijar o chão, impunha-me o professor Barros um ultimato; não tolerava o bloco de facturas para os apontamentos do seu sagrado português. Só podia ser indisciplina, acreditava ele. Por seu turno, o professor Kupuiya, com quem me havia incompatibilizado pela imaturidade com que o corrigia em plena aula, decidira ser pai; isentou-me de pagar as folhas de prova de inglês. Como compensação, eu partilhava com ele jornais e livritos que me chegavam por correspondência. Mas… e as outras provas? Eram dez disciplinas, e o Eliseu decidiu custeá-las. Custeava de vez em quando um lanche na cantina da professora Belinha. Ofertou-me também uma camisola.

Bem, depois de o agradecer no meu livro de estreia, Consulado do Vazio, entendi metê-lo num livro de crónicas que a União dos Escritores Angolanos tem em edição. «O contacto com os capacetes azuis era fruto proibido em certos quarteis. Recordo-me de quando o Eliseu viu o seu negócio retido no Hotel Términus. Mais conversa, menos conversa, prometeu-se subornar o guarda angolano, penhorando o Bilhete de Identidade. Parvo do guarda, já que ficava sempre mais fácil tratar outra via do documento».

Julgava-se no direito de arranjar um emprego que prestigiasse a minha vocação e aptidão. Há dois meses, falou-me da oportunidade numa promissora multinacional japonesa no Huambo como tradutor e assessor de comunicação. Fiquei à espera de mais dados. E o Eliseu foi hoje a enterrar, derrotado por um estado de saúde que há muito titubeava. Ninguém faz ideia dos últimos suspiros do homem. Espero que tenham sido sob um sonho com diálogos em inglês. Seja como for, Eliseu, não te perdoo essa partida de partires!

Gociante Patissa, Lobito 9 Junho 2014
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