segunda-feira, 10 de março de 2014

O LAGO E O OCEANO, conto do brasileiro Vinicius Bandera

Há pessoas que vivem prazerosamente com o que têm ao alcance das mãos. Outras querem justamente o que está para além de si. Ele se enquadrava neste segundo grupo. A cidadezinha em que morava, com toda sua tranquilidade, não o encantava mais, aborrecia-o sobremaneira em seu cotidiano modorrento. Queria a cidade grande, a capital, com seus progressos, seus dias diferentes e sempre voltados para o futuro. Ele almejava o que estava bem longe à sua frente, a ponto de ser preciso muita pressa para conseguir alcançar em tempo hábil. A sua cidade era por demais vagarosa, acorrentada a um passado tão distante quanto o futuro que ele desejava. Não podia mais ali permanecer.
As garotas de sua cidade, não que não fossem bonitas, pois várias o eram, mas tinham como defeito irreparável o fato de não serem da cidade grande. Eram simples demais, mesmo quando se esforçavam por não sê-lo, como em ocasiões dominicais em que usavam vestidos copiados de mulheres das cidades grandes, cujas imagens chegavam trazidas por revistas. No entanto, o que é é e o que não é não é; to be or not to be, that the question.
As garotas da cidadezinha, por mais que imitassem, não eram as garotas da cidade grande. Ele sabia disso, o que o amargurava. Elas também deviam saber, o que as deixava contentes, pois assim tinham um referencial de prestígio para seguir. E a vida, além de ser ou não-ser, é também imitação. Imitar é viver de ilusão, e quanta gente assim vive. Iludir-se é quase tão bom ou até melhor do que viver. Ele não queria a ilusão, queria viver. Era tão radical quanto Hamlet; ser para ele era viver, não-ser era a ilusão atormentadora. Ele buscava o ser, daí que sua terra natal estava lhe fazendo um grande mal, embora ela lhe fosse tão boa, como ele próprio iria reconhecer anos depois de labutar na cidade grande, onde teria muito mais não-viver do que viver.
Ali, como no inferno de Dante, a esperança parecia-lhe não ter nenhum valor. Fazia-se mister tomar o rumo da capital. Mas como fazê-lo? Sem dinheiro, sem profissão, sem experiência de vida... O medo de ir era comparável à desesperança em ficar.
Tinha a impressão de conhecer todas aquelas cinquenta mil pessoas que habitavam o seu pequeno mundo. Os rostos não mudavam, os gestos, os risos, os olhares, as atitudes... Se desse de frente com um forasteiro até o poderia reconhecer como tal. Que vida pacata e boa era-lhe aquele paraíso infernal. Que falta de perspectiva. Que perda de tempo. Que vida parada. Parecia um lago, que para agitá-lo seria necessário atirar-lhe pedras em vôos rasantes, de modo a formar ondas que se espalhassem formando novas ondas. Novas pedras, novas ondas, novas ondas... O lago não se movia por si só. Ele queria mover a si. Para tanto precisava muito mais do que um lago. Certamente um mar, melhor um oceano, com ondas próprias, nas quais a embarcação, que era ele mesmo, subisse, descesse e avançasse sempre, como em uma montanha russa que certa época apareceu em sua cidade. Ele no carrinho, a uma velocidade incrível, vindo do ponto mais baixo, em poucos segundos, atingia o cume, descia ao limite máximo, novamente subia... Que noite movimentada, nem parecia estar na letargia de seu círculo vicioso. Já conhecia praticamente todas as ruas. Tinha o hábito de percorrer uma rua até o fim, depois voltar pela rua paralela. Caminhar assim por todas as paralelas; a seguir, as perpendiculares. Com o tempo, abandonou essa prática, com a qual pretendia inutilmente ampliar a cidade. Tinha que fugir daquela monotonia que a cada dia se tornava mais insuportável. Sentia-se preso na pequena cela que era a sua cidade, a qual lhe permitia dar apenas poucos passos em quaisquer dos sentidos possíveis. Mais tarde compreenderia que a prisão estava dentro de si. Tentava empurrar as paredes de sua cela num esforço inoperante em expandi-la. Era inútil, tinha que evadir-se daquela prisão cujos limites o comprimiam.

A imaginação o levava para longe, sempre para a cidade grande. Andando em sua pequena cela-cidade, imaginava estar nas vetustas avenidas da capital, cheias de pessoas, de novidades, de barulho, de vida. Ia como em uma torrente, levado pela multidão. Era como um trânsito de automóveis, em que a direção de um está condicionada pela direção de outros. Uma solidariedade tácita, orgânica, como diria Durkheim. Com o tempo, ainda inventarão guardas e sinais de trânsito para pedestres. Isto ele não imaginava. Via os imensos letreiros luminosos no alto dos edifícios. Sentia-se como uma formiga diante de uma árvore. Piscavam e piscavam como faróis de naves extraterrestres. Parava porque acabara a rua, então se dava conta de que nada vira, apenas não muitos transeuntes, os mesmos carros de sempre, a roda viva que girava em uma obstinada lerdeza. Isto o cansava mentalmente, fazendo-o voltar para casa, onde se metia em sua cela-quarto, bem mais diminuta do que a cela-cidade. Se continuasse naquele lugar, poderia acabar em uma caixa de fósforos. A ideia de fuga não o abandonava. É o objetivo maior de qualquer prisioneiro. Não mais bastava fugir mentalmente. A ilusão o entorpecia por um momento. Depois que o efeito passava, a angústia voltava revigorada. Fugir como? Havia grades por toda a parte, impossibilidades de toda a sorte. A fuga das prisões não é uma norma, mas uma exceção. Por que ele teria o privilégio de dizer “exceto eu!”? Tudo parecia previsível, até o sol que aparecia e desaparecia sempre nos mesmos lugares em horários pré-determinados. As pessoas pareciam satisfeitas com a vida que levavam. Ou então conformadas. Ouviam o rádio. Viam as imagens trazidas pela TV. Comentavam. Parecia entender muita coisa de seu pequeno mundo.
Àquela menina que cortou o cabelo que nem o da heroína da TV: – Você vem comigo? – um dia ele lhe perguntou.
–          O quê, você está louco?
–          Vamos construir nossas vidas fora daqui, lá na capital. Isso aqui não serve para nós que somos jovens.
–          Você está louco?
–          Você é bonita, inteligente e com a vida toda pela frente. O que pode esperar ficando aqui?
–          É a cidade de meus pais, de meus avós, de toda a minha família.
–          Para eles não há lugar mais ideal, mas para nós...
–          Para você, pois eu não troco isto aqui por nada.
–          Então por que vive falando em ir para a capital?
–          Eu quero ir para conhecer, não para morar.
–          E eu que pensei que você sempre concordasse comigo.
–          Sempre concordei que aqui a vida é parada, que deve ser a glória morar na capital...
–          Então você nunca quis ir morar lá?
–          Não sei, quem sabe...
–          Case comigo e a gente se muda!
–          Casar? Mas como? Nós somos apenas amigos.
–          Mas eu pensei que estivéssemos namorando!
–          Você viaja muito em sua imaginação. Precisa ter os pés no chão, senão poderá sofrer muito.
–          Então vamos namorar?
–          Não sei, preciso de tempo para pensar. Você vive obcecado pela ideia de ir para a capital.
–          Vamos fugir juntos?
–          Você está louco?
Louco podia não estar, mas parecia. Aborrecido, abandonou a garota sentada no banco da praça.
–          Espere, espere...

Ele não esperou. Poucos dias depois, fugiu para a cidade grande, sozinho. Atirou-se a um oceano de incertezas, que o tragaria como a um náufrago desesperado em salvar-se.

Mini Currículo
                                                               
Vinicius Bandera  estudou no Colégio Militar do Rio de Janeiro e no Colégio Militar de Salvador. Graduação em Ciências Sociais (UFF) e graduação em História (UFF). Pós-graduações (lato sensu) em Filosofia Contemporânea (UERJ), Sociologia Urbana (UERJ) e Política Internacional (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo). Mestrado em Ciência Política (UNICAMP). Doutorado em Sociologia (UFRJ). Pós-doutorando em  História Social (USP). Professor universitário.
Autor do livro Liberalismo e cientificismo: conflito de paradigmas na correção/proteção de menores na virada do século XIX para o XX (Editora UFRJ, no prelo) Este livro foi escolhido em seleção nacional. Autor de cerca de 52 contos (4 publicados por seleção) e dois romances (não publicados). Autor de 19  artigos publicados e  14 ainda não publicados.
Diretor, roteirista e editor de quatro longas metragens em HD digital: dois documentários e dois de ficção. Finalista no Prêmio de Literatura SESC/Editora Record categoria conto 2012/2013 (5º lugar). Finalista no Prêmio de Literatura SESC/Editora Record, categoria conto, 2013/2014 (o resultado final sairá em março/2014). 
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