sábado, 1 de março de 2014

Crónica: ASSINAR NO LOBO

Alguém asseverou certo dia que “do imposto e da dívida, o ser humano não se livra”.

Com tudo o que há de discutível nas frases feitas, parece ser inquestionável a fatalidade que a citação supra encerra, bastas vezes faísca para o azedume nas relações humanas. Devíamos mesmo emprestar dinheiro? Mas, do lado oposto, vem a questão: e se fôssemos nós a precisar? A resposta seria seguramente um evasivo “depende do caso”.

Como já abordado, há uma correlação entre a dívida e o conflito no sistema de valores dos Ovimbundu. Vamos aos adágios: “Pesinsa panyãle ongolo, pukamba panyãle ofuka” (o joelho dá cabo da esteira, a dívida dá cabo da amizade) e, ainda, olevalisa eye onjaki” (quem empresta é o conflituoso). Como a dialéctica é lei, temos a expressão “walevalisa wasolekisa” (Quem empresta reserva), só usada quando o final é feliz.

Qualquer dia surgirá uma lenda a explicar quem foi o primeiro caloteiro mundial. Até lá, continuamos a ser esse universo representativo, com os ingénuos (vítimas da sua sensibilidade ou dimensão humana), os que nunca erram (devem, fingem que esquecem ou dizem não gostar que se lhes cobre, mas exibem bens mais caros do que o valor devido), bem como os honestos (raros). Há ainda os avalistas (por cuja credibilidade uma terceira parte obtém crédito). É nesta última classe que nos atemos hoje.

Ora, estamos em finais da década de 90 do século 20, com o mercado de trabalho difícil, tendo em conta a instabilidade política e militar. Pouco investimento do sector privado, baixos salários na função pública, o maior empregador de todos os tempos. E o mês dura uma eternidade, quando se ganha pouco. A dívida passa a ser o meio-termo.

Numa importante empresa no centro da cidade do Lobito, vários funcionários fidelizam-se com o bar do Lobo, onde passam a almoçar religiosamente um refrigerante com ovo estrelado, em jeito de alternativa à ementa do refeitório do estaleiro. Mas como a sombra nunca acolhe a todos, só a alguns é reservado o direito de “assinar no Lobo”, entenda-se registar no caderno o vale a ser honrado ao final do mês.

Ter fome e passe de serviço eram secundários, determinante mesmo era ter um “avalista”. Mas como o mal não vem só, ocorriam sanções, com a publicação na vitrina da empresa do nome de cada caloteiro, o que era, concordemos, vexatório. Para não passar por isso nem pelo desconto compulsivo com base na lista do bar, impunha-se pagar atempadamente ao avalista o valor. Sim, só se podia pagar na presença deste.

Vai daí que certo utente de ovo estrelado, dias após honrar com o avalista, de quem veio a garantia de dívida saldada, seria levado pela intuição a confirmar no bar, de modo a não aparecer na vitrina, de si já na iminência. Curiosamente, a dívida permanecia. Perante isto, insistiu para pagá-la directamente, algo entretanto negado pela balconista.

O que se seguiu foi um manifesto de indignação do avalista. “Você me traiu”, defendia. Na dificuldade de perceber quem teria traído quem, o outro deixava de assinar no Lobo.

Gociante Patissa, Lobito, 1 Março 2014 
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