Finalmente,
aqueles dois profissionais, conhecidos pelo antagonismo em literalmente tudo, deixavam
de discordar em alguma coisa: andavam ansiosos, muito, direi. A viagem ia ser
longa, não em termos de chão necessariamente.
O Família entende um pouco de francês, o Conterra de inglês. Complementam-se no novo
e excitante emprego, desistentes do sombrio posto de professores mal
reconvertidos, isto é, com salário abaixo do previsto para o seu escalão. Integram
o denominado “Staff do Don Acidente”, ku-durista que transborda prestígio, tanto
que – se dependesse do culto à irreverência – seria o embaixador da cultura
angolana.
Don
Acidente é já de uma vasta experiência em tournées, ao contrário do Staff, particularmente
o Família e o Conterra, que tinham nessa ida ao Natal Colorido da Bahia a sua
primeira viagem de avião. Logo, iam recebendo do patrão pontuais lições de
etiqueta no showbiz, que tinha como fundo a afirmação da grandeza angolana. “Vocês, lá, num’valapena esse respeito de
boelo, ya? Os brazucas não podem esquecer que o Samba veio do Semba”, vivia
repetindo o patrão. “Têm que mostrar peso,
senão nos metem estatuto abáuti. Quê que vai dar? Esses wí na banda vão-nos
bifar”. E como abominavam voltar ao emprego antigo, o Conterra e o Família acataram.
No
aeroporto 4 de Fevereiro, os cartões de embarque. “Xê, Família, nós, licenciados, vamos na económica; ele e os bailarinos
vão na executiva?” A réplica foi automática. “Isso não conta, Conterra. São ku-duristas, gozam de imunidades.” E
o Conterra disse: “Claro. Nós somos Staff.
Quando eras prof., a tua licenciatura te deu alguma coisa?”
Na
madrugada de Natal, desembarcavam em Salvador, depois de uma escala no Rio de
Janeiro, onde passaram três horas, muito bem aproveitadas para a demonstração
do peso. Don Acidente conseguiu pôr os brasileiros que o contrataram de patas
para o ar, ao exigir churrasco de galinha com pai e mãe. “Me fala só, Família, era mesmo necessário aquilo?” Como sempre, o Família retrucou: “Você, lá em Angola,
gosta de frango?” E o Conterra: “Gostar,
não gosto, né?, mas não vomito". E de novo o Família: “Meu mano, você não liga só; esses madiês gozam de imunidades, são
ku-duristas.”
Atendida
a exigência de lhe cuidarem do cansaço no Hotel, a garota de programa (nome
requintado para prostituta) exigiu duzentos Reais, para a reacção intempestiva
de Don Acidente. “Estás a brincar ou quê?
Em Luanda, um gajo paga saldo do telefone, jantar, bebedeira para os sogros,
roupa de boutique, cabelo brasileiro, e você só pede cem USD? Toma lá mil
dólares, pá.” E lá a rapariga arrecadou dez vezes mais.
Como
prevista, no palco montado na orla, a noite foi escaldante. No êxtase do
palyback, Don Acidente baixou as calças. “Aquilo
não é atentado ao pudor?”, intrigou-se o Conterra, o que o Família abateu: “Qual pudor, ó meu? Mete na cabeça que são
ku-duristas, gozam de imunidades!” Mas o Conterra insistiu: “Ouviste aquele absurdo do patrão: eu sou gay,
mas não homossexual?” O Família simplesmente não respondeu.
No
dia de regresso, foi o próprio Conterra quem surpreendeu o grupo ao exigir, o mais desordeiro que pôde, à mesa do restaurante
um boi no espeto.
Gociante Patissa, Benguela 24 de Dezembro de 2013
(PS: pura ficção)
0 Deixe o seu comentário:
Enviar um comentário