sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Contos da nossa Terra: UMA VIDA SEM VIZINHOS?

Sobre vizinhança já se falou muito. Ora vizinho supera família, ora só é bom quando não atravessa o muro. É bem um daqueles temas de debate eterno, como o bem e o mal. Via de regra, estão em causa o conflito, o boato, a dívida, a intromissão em assuntos familiares e, já nos últimos tempos, o barulho da música ou do gerador da casa ao lado. Não teríamos mais paz vivendo sem vizinhos? Você já pensou nisso algum dia?

Havia um homem chamado Ferramenta que um dia resolveu realizar um sonho antigo: livrar-se dos vizinhos. Mas como? Foi na procura desta resposta que dedicou bons anos de sua vida a trabalhar duro, poupando ao limite o pouco que conseguiu durante quinze anos. Assim, a esposa só tinha que ir ao salão para tratar da beleza – evitando os dedos da vizinha que ganhava mais um mexerico pela trança; os filhos tinham computador, telemóveis, Internet e todo o aparato possível para fazerem amigos, escusados do entra e sai da vizinhança. Reuniu todo o equipamento de limpeza e higiene possível, deixando para sempre de precisar de mobilizar vizinhos para campanhas de limpeza.

Que não seja possível escolher os pais, avós, irmãos, tios, etc., que gostaríamos de ter, isso é algo com que temos de nos conformar. Cada um nasce e assume os restantes graus de parentesco, como o manda a lei da árvore da família. Não há como escapar. Mas nada mais o irritava do que as refeições atrasadas porque a esposa foi à prosa, os filhos da casa ao lado com lugar cativo à mesa, ou os olhos da rua por cada artigo de valor que o vissem trazer para a casa. Ou não se incluíssem na extensa noção de família alargada do africano Bantu os para-familiares indirectos que são os vizinhos.

Uma vez reunidas as condições, foi ao deserto viver. Casa projectada no isolamento, como sempre quis – sem vizinhos! A distância era por aí quinze quilómetros do seu antigo bairro. Tudo o que se ouvia à volta era o assobiar dos pássaros, o soar do vento e, enquanto tardava o jardim crescer, deleitavam-se observando a variedade de bichos. A vida tinha melhorado, e de que maneira! Afinal, quem é que não gosta de sossego?! Viviam uma paz perfeita até um dia ser invadido por antigos vizinhos numa onda terrível de violência. Do tipo, espancar primeiro, perguntar depois. Tudo porque uma águia que sobrevoava o antigo bairro resolveu roubar um bebé que descansava ao pé da árvore. E então os moradores da aldeia decidiram segui-la. Um tempo depois, e já cansada, a águia decidira largar a presa. Só que – vai-se lá saber porquê – o bebé foi pousar exactamente no território da nova casa do senhor Ferramenta.

– Pois então – indignaram-se os antigos vizinhos – mudaste de bairro é para roubar bebés alheios usando águias? Seu feiticeiro do raio!

Pouco tempo e forças teve o velho Ferramenta para se defender. Sobre ele pesava – e ao que parece para sempre pesará – a incisiva acusação de o isolamento ser só um pretexto para o roubo de recém-nascidos. O grande desafio passou a ser como convencer a sociedade do contrário, já que… querendo ou não, viver é ser vizinho.

Adaptação de Gociante Patissa, 27/05/06. Publicado inicialmente no Boletim “A Voz do Olho” Veículo Informativo, Educativo e Cultural da A.J.S. (Associação Juvenil para a Solidariedade), Lobito, Abril/2007
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