Sobre vizinhança já se falou muito. Ora vizinho supera
família, ora só é bom quando não atravessa o muro. É bem um daqueles temas de
debate eterno, como o bem e o mal. Via de regra, estão em causa o conflito, o
boato, a dívida, a intromissão em assuntos familiares e, já nos últimos tempos,
o barulho da música ou do gerador da casa ao lado. Não teríamos mais paz
vivendo sem vizinhos? Você já pensou nisso algum dia?
Havia um homem chamado Ferramenta que um dia resolveu
realizar um sonho antigo: livrar-se dos vizinhos. Mas como? Foi na procura
desta resposta que dedicou bons anos de sua vida a trabalhar duro, poupando ao
limite o pouco que conseguiu durante quinze anos. Assim, a esposa só tinha que
ir ao salão para tratar da beleza – evitando os dedos da vizinha que ganhava
mais um mexerico pela trança; os filhos tinham computador, telemóveis, Internet
e todo o aparato possível para fazerem amigos, escusados do entra e sai da
vizinhança. Reuniu todo o equipamento de limpeza e higiene possível, deixando
para sempre de precisar de mobilizar vizinhos para campanhas de limpeza.
Que não seja possível escolher os pais, avós, irmãos, tios,
etc., que gostaríamos de ter, isso é algo com que temos de nos conformar. Cada
um nasce e assume os restantes graus de parentesco, como o manda a lei da
árvore da família. Não há como escapar. Mas nada mais o irritava do que as
refeições atrasadas porque a esposa foi à prosa, os filhos da casa ao lado com
lugar cativo à mesa, ou os olhos da rua por cada artigo de valor que o vissem
trazer para a casa. Ou não se incluíssem na extensa noção de família alargada
do africano Bantu os para-familiares indirectos que são os vizinhos.
Uma vez reunidas as condições, foi ao deserto viver. Casa
projectada no isolamento, como sempre quis – sem vizinhos! A distância era por
aí quinze quilómetros do seu antigo bairro. Tudo o que se ouvia à volta era o
assobiar dos pássaros, o soar do vento e, enquanto tardava o jardim crescer,
deleitavam-se observando a variedade de bichos. A vida tinha melhorado, e de
que maneira! Afinal, quem é que não gosta de sossego?! Viviam uma paz perfeita
até um dia ser invadido por antigos vizinhos numa onda terrível de violência.
Do tipo, espancar primeiro, perguntar depois. Tudo porque uma águia que
sobrevoava o antigo bairro resolveu roubar um bebé que descansava ao pé da
árvore. E então os moradores da aldeia decidiram segui-la. Um tempo depois, e
já cansada, a águia decidira largar a presa. Só que – vai-se lá saber porquê –
o bebé foi pousar exactamente no território da nova casa do senhor Ferramenta.
– Pois então – indignaram-se os antigos vizinhos – mudaste
de bairro é para roubar bebés alheios usando águias? Seu feiticeiro do raio!
Pouco tempo e forças teve o velho Ferramenta para se defender.
Sobre ele pesava – e ao que parece para sempre pesará – a incisiva acusação de
o isolamento ser só um pretexto para o roubo de recém-nascidos. O grande
desafio passou a ser como convencer a sociedade do contrário, já que… querendo ou não, viver é ser
vizinho.
Adaptação de Gociante Patissa, 27/05/06. Publicado
inicialmente no Boletim “A Voz do Olho” Veículo Informativo, Educativo e
Cultural da A.J.S. (Associação Juvenil para a Solidariedade), Lobito,
Abril/2007
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