quarta-feira, 8 de maio de 2013

Crónica: POSSO OU NÃO ESCREVER SOBRE O AMOR?


Já em posse do bruto que daria corpo ao meu livro de estreia, o editor deu-me a ler algumas obras literárias, gramáticas e antologias para captar conceitos, forma e espírito da poesia. Intrigou-me um conselho que desaconselhava principiantes a escreverem sobre o amor, de tão explorado que o tema vem sendo por grandes escritores.

Sobre o amor já vivi, também eu, tudo o que me poderia surpreender. Já enganei, já fui enganado. Já conquistei, já fui venerado. Já enchi litro de lágrimas, não duvido que tenha causado o mesmo a alguém. Já levei corrida (a que mais marcou foi a da cunhada de uma miúda de Benguela que conheci quando aos 16 anos eu trabalhava como fotógrafo numa barraca da praça da Catumbela; era bonita, voz grossa, e trocamos alguma carícia periférica, até o dia em que me meti no autocarro para ir ter com ela no bairro Alda Lara. Foi correr de verdade e nunca mais olhar atrás, o nome dela é tudo quanto restou. Cheguei a desejar morte à minha algoz – sei que não devia, embora não ignore que amor e morte, efectuada ou prometida, não andam muito distantes). Como é claro, também já fui herói, e é nessa última condição que me atenho hoje.

Certo dia, de bucho devidamente satisfeito, meu amigo e eu cuidamos de esfregar as mãos com petróleo (querosene?) para abafar a inconveniência do perfume da lombula (ou lambuda, para aqui aportuguesar a boa sardinha) grelhada, difícil que estava naquela noite achar o pedaço de sabão mais próximo. Cumprindo a rotina, fizemo-nos à parada, ao longo da estrada Kalumba-Catumbela, caprichando no vocabulário para cair na graça de novas raparigas na sanzala ou, no mínimo, consolidar namoricos.

Caminhávamos aleatoriamente pela noite escura, que se fazia mais escura pela ausência, não já da energia eléctrica, mas sobretudo de meninas que deviam ter muito trabalho doméstico a seguir ao jantar. Não seria a primeira noite de desencontros, estávamos cientes, bons dias viriam, ou não tivesse a semana sete dias e noites.

Chamou a nossa atenção algo a que chamaríamos de discussão, se passasse de monólogo. “Vou-te sepultar… na sepultura”, retinia um tipo que mal conhecíamos. Aproximámo-nos. A diferença de idade entre nós e o trio em certa medida equivalia a uma geração. “Eu vou-te sepultar… na sepultura. Eu sou baiano. Eu sou muito baiano”, dizia. Será que os baianos (naturais da Baía Farta) sepultavam fora de sepulturas? Bom, teria de consultar livros de arqueologia e antropologia mais tarde, que urgia mesmo era salvar o mano que conhecíamos. Este, na típica ambivalência, tentava uma “recaída” com a ex-namorada, não que ela não fosse cúmplice, só que, para seu azar, o rival se antecipara na recolha de informações relevantes sobre si (nome e fenótipo).

A rapariga, impotente, tentava acalmar o namorado, que seguia ameaçando, suas mãos ora no bolso, ora na cintura, dando a entender que trazia armamento sob o casaco. Já o nosso amigo era o medo em pessoa. Sua motorizada andava confiscada pelo agressor. Mas por muito agressivo que o baiano quisesse ser, ele era estranho no bairro, ao qual estava ligado apenas pela namorada. A nossa presença jogava contra si. Foi então que libertou a motorizada. E lá o nosso conhecido saiu connosco da zona de conflito.

Por essa e por outras, posso ou não escrever sobre o amor?

Gociante Patissa, bairro da Santa-Cruz, Lobito, 8 Maio 2013
Share:

0 Deixe o seu comentário:

A Voz do Olho Podcast

[áudio]: Académicos Gociante Patissa e Lubuatu discutem Literatura Oral na Rádio Cultura Angola 2022

TV-ANGODEBATES (novidades 2022)

Puxa Palavra com João Carrascoza e Gociante Patissa (escritores) Brasil e Angola

MAAN - Textualidades com o escritor angolano Gociante Patissa

Gociante Patissa improvisando "Tchiungue", de Joaquim Viola, clássico da língua umbundu

Escritor angolano GOCIANTE PATISSA entrevistado em língua UMBUNDU na TV estatal 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre AUTARQUIAS em língua Umbundu, TPA 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre O VALOR DO PROVÉRBIO em língua Umbundu, TPA 2019

Lançamento Luanda O HOMEM QUE PLANTAVA AVES, livro contos Gociante Patissa, Embaixada Portugal2019

Voz da América: Angola do oportunismo’’ e riqueza do campo retratadas em livro de contos

Lançamento em Benguela livro O HOMEM QUE PLANTAVA AVES de Gociante Patissa TPA 2018

Vídeo | escritor Gociante Patissa na 2ª FLIPELÓ 2018, Brasil. Entrevista pelo poeta Salgado Maranhão

Vídeo | Sexto Sentido TV Zimbo com o escritor Gociante Patissa, 2015

Vídeo | Gociante Patissa fala Umbundu no final da entrevista à TV Zimbo programa Fair Play 2014

Vídeo | Entrevista no programa Hora Quente, TPA2, com o escritor Gociante Patissa

Vídeo | Lançamento do livro A ÚLTIMA OUVINTE,2010

Vídeo | Gociante Patissa entrevistado pela TPA sobre Consulado do Vazio, 2009

Publicações arquivadas