quinta-feira, 16 de maio de 2013

Crónica: CAFÉ DE SUOR E MORTE (fragmentos)


Naquele ano os cafezais do norte tinham florido fora do comum. Os fazendeiros esfregavam as mãos de contentes, antevendo colheita abundante, com terreiros cheios de café cereja a secar, para meter a descasque. 
(…)
 Às sete horas da manhã de certo dia apareceu no terreiro de determinada roça uma mulherzinha com o filho às costas e levava na mão uma cabacinha de quissangua [refresco feito de fuba]. Dirigiu-se ao capataz do grupo das mulheres para lhe pedir dispensa do serviço nesse dia por ter o filhinho doente há mais de dois dias. O capataz negou-lhe a dispensa e marcou-lhe a tarefa habitual, de enchimento de uns tantos cestos de café cereja. A dureza com que a ordem foi dada não permitiu recusa da mulher habituada como outras a ver como eram tratadas em caso de desobediência. Com o filho a escaldar em febre, manteve-o nas costas e foi colhendo bagos com maior ligeireza, na tentativa de abreviar o tempo da empreitada. As horas correram. De vez em quando desapertava o pano de pintado para verificar o estado da criança que amolentada, respirava custosamente pela boca. Retomou a tarefa. Seriam cerca de treze horas quando, de novo, desamarrou o pano. Puxou o pequerrucho para o peito. Tinha os bracinhos descaídos, os olhinhos semicerrados, a boca entreaberta, o corpo inerte e frio. Tinha sido levado pela morte. E aquela mãe ao descobrir que fora despojada do ente querido das suas entranhas, entrou em pranto próprio da mulher africana que, quando dorida, não tem as pragmáticas dos chamados civilizados como se para enfrentar a dor humana seja preciso estudar pelos códigos da etiqueta e civilidade. Aquela mãe estrebuchou pelo chão e as companheiras de trabalho, ao ouvi-la chorar, correram em seu socorro. E o pranto contagiante estendeu-se a todas aquelas mulheres, mães também, servindo à força naquelas plantações de café de suor, dor e morte.


Só o capataz preto, industriado para sacrificar seus irmãos de cor em benefício do capitalista, se manteve insensível à desgraça em que tinha quota parte. Boçal com alma de escravo, não passava de pau-mandado naquela triste época em que os paus-mandados tanto podiam ser pretos analfabetos como brancos componentes da rede administrativa a impor trabalho sem horário com salário de fome

Raul David, 1989, pág. 55. In «Crónicas de Ontem – para ouvir e contar». União dos Escritores Angolanos. Luanda, Angola.
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