1. No plano da grafia ou símbolo
Em termos de grafia, inclino-me para a forma convencional das línguas bantu, isto é, LUSATI [lu-sa-ti], pois o S entre vogais nunca ganha valor de Z, ao contrário do que ocorre nas línguas europeias. Neste caso, LUSSATI seria uma corruptela derivada da confusão que subsiste com a dupla norma para uma mesma língua, coabitando a convencional bantu (adoptada pelos evangélicos/protestantes) Vs a católica (apadrinhada pelo regime de então durante a dominação colonial portuguesa).
Também não é correcto grafar LUSSATY, colocando Y para representar o fonema /i/, se tivermos em conta que as semi-vogais Y e W servem para fazer hiato, isto é, quando a letra U é sucedida de uma vogal ganha a forma de W, o mesmo se dando com o I sucedido de vogal, que se metamorfoseia em Y. (Ex: "owanda wayuka cokuti!" ou seja, a rede veio tão carregada! Repare-se que no adjectivo "cokuti", precisamente porque o I é final, não usamos Y, pois nesta posição estará mal empregue.)
2. No plano metafórico
Socorremo-nos do levantamento do académico Francisco Xavier Yambo (2003, pág 67), in “Dicionário Antroponímico Umbundu”, selo da Editorial Nzila, segundo o qual o nome LUSATI:
"deriva de OLUSATI, resto de um milheiro cortado em crescimento e sem possibilidade nem de crescer nem de morrer. Dá-se à criança que nasce sem ter encontrado o seu pai. A morte do pai foi prematura ao ponto de não conseguir ver o fruto da sua existência. Pode ser também para aquele que além de não encontrar o seu genitor, venha a perder a mãe logo após o parto."
3. No plano das variações regionais
A língua Umbundu, que caracteriza como a própria radical diz o grupo etnolinguístico umbundu, oriundo do planalto central e em parte no litoral (seis das 18 províncias), o que representa demograficamente um terço da população angolana, pode ter beneficiado em termos de expansão dos anos de guerra civil, quer pelo êxodo rural em busca de melhores condições de vida, quer pela adopção da língua como senha identitária por um dos movimentos com poder de ocupação de territórios ao longo de décadas no sul, leste e no norte, falo da Unita.
Não surpreendeu, pois, que em 2002, por exemplo, as imagens do programa Nação Coragem, da Televisão Pública de Angola, exibissem a partir do considerado enclave de Cabinda, extremo norte e sem ligação terrestre interna, um exército animadíssimo a entoar com dicção a um nível nativo cantares populares umbundu.
Sendo já factual que não existe umbundu padrão, como não existe padrão de língua nenhuma senão uma falácia com apetências de imposição etnocêntrica, podemos acrescentar que o singular de milheiro cortado ou da palha, dependendo da variante, à medida que se deixa o planalto central (Huambo e Bié), pode adoptar outras grafias e pronúncias. No interior de Benguela, por exemplo, o singular pode tanto ser OLUSATI ou OCISYATI [otshi-shati] e consequentemente o plural OVISATI ou OVISYATI. E se ouvir dizer que alguma menina se chama Shatinha, de nome próprio, não porque lhe os pais lhe augurassem mau feitio, chatice ou coisa parecida; tratar-se-á do diminutivo de Olusati ou Ocisyati.
4. No plano dos hábitos alimentares
Sendo o pirão de milho a principal refeição (entenda-se mesmo diária ao almoço, jantar e até ao matabicho) entre os ovimbundu, será de imaginar o simbolismo de vitalidade imanente em tudo o que envolva o processo de produção, colheita e transformação do milho.
O milho dá o pirão (ou funji, aqui para introduzir um termo da região etnolinguística ambundu, do norte) que é degustado com molho de verduras, feijão, peixe ou carne. Mas o milho deriva também na ocisangwa (ou kisângwa, outra vez para usar a terminologia do norte, onde o prefixo “ci” [tsi] passa a ser ki).
Ocisângwa, cujo valor aqui abordamos em tempos enquanto cartão de hospitalidade com que uma dona de casa se revela proveniente de bom berço, é também a bebida sempre presente na execução de empreitadas, pelo seu poder de saciedade, para além do efeito diurético. Não entrarei para o mérito da chegada e introdução do milho na vida dos africanos mais remotos e da motivação, segundo vários pesquisadores, de encher de energias a força de trabalho mal pago.
Daí que quando no outro dia ouvi falar em "mingau", iguaria da gastronomia da Bahia, no Brasil, o Estado mais africano naquele país por conta do secular tráfico de escravos, procurei logo saber se entrava o milho nos ingredientes, ao que me foi respondido que sim. Porquê? Porque «ongau» é como se designa a primeira refeição em umbundu, de maneira que a saudação equivalente a Bom dia é precisamente «nangau!» No meio rural, muitas vezes este «ongau» consiste em assar sobras de pirão da noite anterior.
Luanda 31 Maio 2021
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Caro Gociante,
Como sempre, os seus artigos de pendor mais etnográfico são interessantíssimos.
Muito grato pela sua visita que tanto nos honra, caro Afonso Loureiro.
Volte sempre
Gociante Patissa
Gostei de ler. Estupenda aula.
Uma boa "Lusatyada" kkkk
Obrigado, companheiro Kanyanga
Um abraço
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