A primeira imagem que me ocorre quando penso na cidade de Benguela por estes dias seria a de um Peugeot 404 (modelo fabricado entre 1960 e 1975), mas já velhinho e resiliente, que à medida que circula vai deixando cair uma ou outra peça, estoira a pintura, um pneu que lhe fura mesmo estando na condição de socorro. Só que esse Peugeot 404, sem arranque, segue a marcha (porque vale no seu conjunto) mesmo quando os ponteiros do calor do motor beiram níveis de alarme. Deve ser porque a 17 de Maio, Benguela, ou cidade de São Filipe, completa 404 anos de fundação (oficial).
E como município sede, a aura da Ombaka cobre os restantes, considerando que, tal como o corpo humano, a ordem territorial opera na lógica de sistema, onde unha e cabelo, se quisermos litoral e interior, concorrem para o mesmo fim, que é ou seria o bem de todos, todos enquanto sujeitos e objectos. Daí que prevaleça o sonho da representação integradora e de paridade cidade-campo.
Celebramos o quê? Este seria o ponto de partida em cada ciclo, colocando o sentido epistemológico num patamar superior ou no mínimo equitativo em relação ao lúdico, à merecida farra, do reencontro de kambas. Impõe-se até mesmo para honrarmos a nossa história, como postula o hino nacional, a passagem de testemunho entre gerações, colocando a análise e a solidez do conhecimento sociohistórico à frente da tradicional emoção regada com o bom das nossas bebidas espirituosas e do bom kitute.
Aonde queremos chegar? Do ponto de vista académico, incentivos precisam-se para não apagar a chama do debate de ideias, buscando na divergência e na robustez do argumento o conhecimento de nós mesmos. Há que considerar as sensibilidades e subjectividades que existem, aparentemente abafadas pelo politicamente correcto transgeracional. É preciso ouvir os que discordam da data de 17 de Maio, na lógica de que se festeja a victória do invasor Cerveira Pereira sobre a resistência dos povos encontrados. O que existia antes disso e que figuras africanas de relevo merecem memória?
Há que ouvir aqueles que defendem a recolocação das estátuas do poder colonial à entrada de edifícios oficiais (em nome da história), ouvir quem acha que a independência não valeu a pena, do mesmo jeito que se precisa ouvir os que advogam uma perspectiva mais nacionalista e de rotura. O pior que nos pode acontecer é termos um lugar só lembrado pelo azul do mar e pelas camas de hotel. Ah, feliz a nova geração que não tem de sentir na pele a latente teia “das famílias tradicionais”, rótulo por meio do qual o complexo de superioridade conferia a uma elite, intocável, o pódio sobre o cidadão comum.
Urbanismo ou humanismo? A pergunta parece capciosa, e é, pois não seriam mutuamente excludentes as proposições. Mas no contexto de Benguela, ainda mais agora que circulam prospectos de uma praia morena plástica, impõe-se ressignificar as prioridades de desenvolvimento. Como cantou Teta Lágrimas, diríamos “Benguela, já foste linda, mas temos esperança ainda.” Porém a atracção do turista pelo prisma do revivalismo não deverá sobrepor-se à premente necessidade de requalificação da periferia, do saneamento básico, da melhoria das condições das escolas e dos hospitais, da iluminação. Há que humanizar as prioridades da governação, e aí pouparemos no coartem e no soro. “Cilanda ongombe citunda vonjo”, diz o adágio umbundu que o recurso com que se compra o boi parte de casa.
O pão ou o cão? Recorremos à literatura para lembrar a fábula da cigarra que se vê à beira de morrer de fome e decide pedir socorro à formiga, no que ela pergunta o que andou a faminta a fazer na época seca, quando deveria trabalhar. Como respondesse que andou a cantar, a formiga atirou: pois agora dança! Voltando a Benguela em festa, há que olhar para o parque empresarial privado nacional que fecha estabelecimento a cada dia, redundando no poder de compra das famílias e no investimento em cães de raça para se protegerem do ladrão, uma vez a outra empurrado para ali pelo pão.
Este ano, muitos de nós estarão privados de olhar e subir neste Peugeot 404 velhinho, já sem arranque, que é a cidade de Benguela, muito por conta da pandemia. Mas há que empurrar, há que marchar!
Gociante Patissa | Luanda 11 Maio 2021 | www.angodebates.blogspot.com
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