terça-feira, 14 de agosto de 2018

Entrevista | “Serei naturalmente candidato ao Nobel de Literatura 2019”, Zetho Cunha Gonçalves



Zetho Cunha Gonçalves é, até onde sabemos, o único angolano alguma vez candidato, de facto, a algum Prémio Nobel. A iniciativa da proposta do seu nome partiu da Universidade de Lisboa. Nasceu na província do Huambo, corria o distante ano de 1960. Poetaensaísta, tradutor e autor de literatura infantil, poderá não ser um nome muito conhecido do púbico leitor angolano em função de residir na europa. Nesta entrevista que concedeu ao Blog Angodebates www.angodebates.blogspot.com, o autor de «Rio Sem Margem» manifestou estranheza pelo facto de a imprensa angolana ter ignorado a sua candidatura ao Prémio Nobel de Literatura, edição do ano 2018, que no entanto acabou cancelada devido à demissão em massa dos membros da Academia Sueca.

O que representa para si a inscrição da sua obra entre os candidatos ao Prémio Nobel de Literatura?

Antes que tudo, uma enorme surpresa, de mais a mais por ter sido pedido pela Academia Sueca a uma Faculdade de Belas Artes a indicação de nomes para o Prémio Nobel de Literatura. Por outro lado, o reconhecimento inequívoco e extrafronteiras do valor do meu trabalho poético e literário.

Quanto ao prémio, em si, devo dizer, com toda a franqueza, que não nutro ilusões nem tenho veleidades de qualquer espécie: trata-se apenas da nomeação de um nome entre tantos outros por esse mundo fora. Seria, contudo, hipócrita, se não dissesse que a simples nomeação do meu nome para um tão alto galardão me deu uma imensa e profunda alegria, para além de uma soma naturalmente maior de invejas e, quiçá, de irónicas inimizades.

Convém, porém, acrescentar, para que não restem dúvidas, que o meu nome foi proposto como poeta e autor de literatura para a infância e juventude angolano (e não português, malaio ou dinamarquês). E é também a primeira vez que um poeta africano de língua oficial portuguesa é oficialmente proposto para Prémio Nobel de Literatura.

Acha que o cancelamento deste ano pode beliscar o prestígio do galardão?

O prestígio do galardão, creio que não será beliscado: trata-se, afinal, do mais cobiçado de todos os prémios literários a nível mundial. Mas, obviamente, alguma coisa mudará. Quanto às alterações que se venham a verificar, na sequência das demissões em massa dos membros da Academia Sueca e da eleição de novos membros que os substituam, é um mistério cuja decifração só poderá produzir especulações inusitadas.   

Sabemos que foi inscrito com substrato de académicos radicados em Portugal. Da parte de Angola, houve alguma instituição que se prestasse a reforçar a sua candidatura?

Que seja do meu conhecimento, apenas o Novo Jornal concedeu espaço à publicação da notícia, reproduzindo o texto da carta enviada pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa à Academia Sueca justificando a proposta do meu nome para Prémio Nobel. E devo dizer que fui eu mesmo quem enviou todos os dados à imprensa, quer angolana quer portuguesa, a pedido da própria Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, uma vez que a Faculdade não tinha meios nem contactos para o poder fazer.

E aqui, não resisto a não contar um caso no mínimo curioso, que é a resposta do director do jornal Cultura ao envio da notícia para sua eventual publicação, que transcrevo na íntegra, e sem comentários: «Zetho, meu mano, vamos esperar até te outorgarem o prémio, não vale a pena estar a noticiar algo que é apenas uma candidatura… Isso é mais para os jornais generalistas…/ JLM».

Se acaso alguma entidade angolana reforçou a minha candidatura, sinceramente desconheço.

Informações disponíveis indicam que as obras concorrentes do ano cancelado, este caso 2018, serão reconduzidas à edição imediatamente a seguir. O Zetho vai manter a candidatura?

Não fui eu que me autopropus, logo, não serei eu quem tem que manter ou não a candidatura, que, segundo sabemos, transitará para o ano seguinte, muito embora a revalidação da proposta do meu nome, futuramente, seja da estrita competência da entidade que me propôs e das entidades que, eventualmente, se lhe venham a juntar, sejam elas angolanas ou de outras latitudes. Assim, e pelas declarações que a própria Academia Sueca divulgou através da imprensa, serei naturalmente candidato ao Nobel de Literatura 2019.

Que sugestões faria para se retirar a literatura angolana da letargia que cada vez mais parece evidente?

Um grande poeta ou um grande ficcionista é sempre um extraordinário leitor, um leitor de uma exigência estética, poética e literária, sem contemplações. Quem não lê, jamais poderá vir a escrever alguma coisa que se distinga da vulgaridade mais comezinha. E essa é a pecha da literatura e da poesia angolanas na sua esmagadora maioria: os poetas não lêem, ou lêem pouco a grande poesia do mundo que nos antecede e com a qual se aprende a escrever mais certo no que ao que se tem para dizer a escrita fatalmente obriga. Sequer consultam dicionários, ferramenta fundamental para qualquer pessoa que se proponha criar obra literária.

Ler é absolutamente fundamental para se poder escrever, não só sem erros ortográficos ou com palavras deslocadas pelo seu significado real da intenção do autor, como também na maior fluência e solidez que haverá na construção de um pensamento, na sua exposição por escrito na prosa de ficção ou ensaística, ou na formação da consciência necessária à limpeza implacável do que num verso ou num poema está a mais e o embota de força reveladora e estética, tornando-o banal e sem poder de resistência a uma releitura futura.

E se é verdade que estas pechas se podem atribuir em grande parte a um ensino frágil, desde a escola primária às universidades, ou à falta de bibliotecas e livrarias no país, alguém que deseje realmente conhecer um pouco da grande literatura do próprio país, desde a fabulosa literatura de transmissão oral à poesia e ficção publicadas, ou do mundo (coisa que não é nenhum crime de lesa-pátria, bem antes pelo contrário, será uma forma de mais identidade, pessoal e colectiva, se fazer dar à expressão criada pela literatura de invenção e pela poesia, através de uma sensibilidade mais apurada e exigente por parte dos seus autores), tem hoje acesso ao que a internet oferece, havendo lá de tudo, como sabemos, do péssimo ao intemporal. Bastará saber escolher e fazer do acto de ler, não uma farra de palmadinhas nas costas, mas um acto objectivo de prazer e de proveito cada vez mais exigentes.

Este ano, o Prémio Novos Talentos da UCCLA (União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa) foi atribuído a um cidadão do Paraguai, ainda que residente no Brasil. O Zetho vê isto de forma positiva ou é daqueles que defendem que o prémio devia abarcar apenas nacionais de países do espaço de língua portuguesa, aquela que afinal tem pouca expressão se comparada com a inglesa, a francesa, a árabe ou a espanhola?

Creio que o regulamento desse prémio exige que a obra concorrente seja escrita em língua portuguesa, independentemente da nacionalidade do seu autor. Logo, não me choca nada que seja um paraguaio ou um chinês a vencer o prémio, desde que a sua obra não seja falha de qualidade, que, sendo objecto sensível de discussões, posto se dizer ser subjectivo o gosto, a inequívoca qualidade de um texto salta imediatamente à leitura. Como, de resto, a falta dela. A questão, para usar uma expressão do poeta David Mestre, é não se ser «anterior ao gosto».

Tem alguma obra em carteira que venha a conhecer a luz em breve? Se sim, que género?

No Brasil, onde tenho publicadas várias obras para a infância e juventude, há vários livros que, dadas as circunstâncias sociais e políticas actuais, ainda não foram publicados: A Galinha-de-Angola Que Punha os Ovos no Telhado (poemas); Aqui Há Dinossauro (conto); A Serpente Que Dançava Para Mudar de Vestido (poemas); Relojoeiro de Palavras (poemas) e os recontos, criados a partir de contos da tradição oral angolana, Com o Cágado Ninguém Brinca e A Filha do Sol e da Lua. Ainda no Brasil, por falta de autorizações dos autores ou seus herdeiros, há anos que está parada uma Antologia de Contos Africanos de Língua Portuguesa.

Em Portugal, deve sair ainda este ano a reunião da minha obra poética, um volume de traduções de poesia, Transversões, e algumas obras cujas edições organizei: Cartas a Salazar e Outras Epístolas, de Raul Leal (Henoch); Paixões & Aventuras de Fernando Pessoa para Jovens Irreverentes, de Fernando Pessoa (literatura juvenil) e a reedição da Obra Poética, de Luís Pignatelli.

Zetho Cunha Gonçalves tem publicadas obras de poesia, nomeadamente A palavra exuberante (2004) e Sortilégios da terra. Canto de narração e exemplo (2007). Literatura infanto-juvenil: Debaixo do arco-íris não passa ninguém (2006), e A caçada real (2007), ambos ilustrados por Roberto Chichorro. Traduziu O desejo é uma água, de Antonio Carvajal. Organizou edições da obra de Mário Cesariny, Luís Pignatelli, António José Forte, Natália Correia, Eça de Queiroz, Fernando Pessoa, e várias antologias da poesia e do conto angolanos.

Foto: Cortesia (via facebook)
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