Chamam-lhe cabelo brasileiro. Completa a vaidade e auto-estima da mulher negra angolana que se acredita moderna. A professora, a bancária, a deputada, a ministra. No momento em que prega sermos todos uma semelhança de Deus, a pastora endireita as fibras mortas da peruca. Custa caro, muito caro, pelo menos mais do que o salário médio da função pública. Há também o proveniente da Índia e há o da China, justiça seja feita, mas o fim é o mesmo: abafar a carapinha. Teta Lando, de boa memória, acreditava, ingénuo como a própria canção, que "negra de carapinha dura / não estragues o teu cabelo /me jura / faz as tranças corridinhas/ com missangas a cair / carapinhas pequeninas / como aquelas que vovó fazia". Cabelo natural dá muito trabalho, diz-se, o que não deixa de ser verdade, ainda mais na intensa rotina urbana. Mas esse cabelo artificial, cada vez mais se afirmando como símbolo de status, quanto mais cara a peruca, maior rendimento e prestígio se tem, representa o Brasil de que época afinal? O Brasil emancipado ou o medieval? O Brasil que busca dignidade ou aquele parado no tempo esclavagista? É estranho pensar-se nisso, já que por cá, é intenso o movimento de afirmação da identidade de cada povo, o que passa também e essencialmente por romper os padrões alienantes de beleza, onde o índio, o caucasiano, o oriental e o africano procuram coabitar sem que uns imponham os seus traços biológicos sobre outrem. É indispensável reconhecer o impacto do movimento feminista negro, à parte os radicalismos colaterais, responsável pela desconstrução de determinados paradigmas inconscientes da indústria da moda e que mais não são do que a subjugação de outras raças/etnias pela supremacia branca. Há sempre uma agenda oculta (ou não tão oculta) na imposição de modelos e padrões do que se constrói socialmente como o belo ou o feio, infelizmente. Vive-se uma altura em que a revolução capilar afro no Brasil é uma "febre", sustentada por debates de afirmação e num contexto de viragem em que a própria lei obriga ao ensino das raízes africanas no plano escolar. Enquanto isso, a mulher angolana moderna, para estar bem apresentada, importa exactamente o cabelo brasileiro, que o brasileiro entretanto já não usa. Ou seja, há um embuste do sector mercantil que vende entulho em nome de uma sociedade-modelo estereotipada, talvez por estar encaixada numa geopolítica desenvolvida. Para haver cabelo brasileiro, excelências, teria de haver um só Brasil (aquele da telenovela). E isto seria uma antítese deste país irmão da América do Sul, cuja história se resume na palavra diversidade. Chateie-se com o atrevimento do meu olhar que este texto inconveniente levanta. Eu aceito e respeito. Repita quantas vezes quiser a narrativa de que você é maior de idade e é livre de fazer o que bem lhe aprouver com o seu dinheiro (ou o que lhe oferecerem). Tudo isto é legítimo. Mas fica na mesma a sugestão para irmos questionando a "estética ideal", até porque como disse certa vez uma activista cujo nome agora nos escapa à memória, "o simples facto de usar o penteado de cabelos naturais chega a ser um sinal de resistência política". Portanto, quando lhe venderem o cabelo brasileiro, questione, por gentileza, cara irmã: Brasil de que época? Ainda a só isso. Obrigado.
Gociante Patissa | São Paulo, Brasil, 20.08.2018 | www.angodebates.blogspot.com
Foto de autor e modelo desconhecidos
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