quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Crónica | PEDRO

Texto de António Lobo Antunes (escritor português)

A criança mais fácil de educar que conheci na vida foi o meu irmão Pedro, porque dizia sempre que sim.

– Pedro isto não é hotel
– Sim mãe
– Não voltas a chegar tarde
– Sim mãe
– O jantar é às oito e um quarto
– Sim mãe
– E estás à mesa a essa hora
– Sim mãe

e depois, claro, não aparecia. Telefonava às dez da noite.

– Onde é que tu estás Pedro?

– Do outro lado da linha
– E vais voltar imediatamente para casa.
– Sim mãe

e chegava, claro, às horas que lhe apetecia, tranquilo, suave, educadíssimo.

– Pedro tu tiras a paciência a um santo

– Sim mãe
– Pedro amanhã não sais de castigo
– Sim mãe

e claro que saía. A nossa mãe

– Pedro lembras-te do que eu te disse ontem?

– Sim mãe
– Que ficavas em casa de castigo
– Sim mãe
– E mesmo assim saíste
– Sim mãe
– Não achas que eu devia bater-te?
– Sim mãe
– Fecha-te depressa no quarto antes que eu perca a cabeça
– Sim mãe

mas como a porta do quarto e a porta da rua se confundiam, aliás para o Pedro todas as portas eram portas da rua, descia as escadas outra vez, sereníssimo, sem pressa, e a nossa mãe, exausta, acabava por desistir pronunciando a frase do costume

– E uma luta constante para tudo

que significava um acto de rendição por absoluto cansaço. O Pedro foi toda a vida assim porque era irresistível e o seu sorriso, lindo, desarmava o mundo. Não me lembro de me zangar uma única vez com ele, de qualquer dos meus irmãos se zangar uma única vez com ele. Não conseguíamos. E depois até fisicamente era diferente de nós, o único moreno, de cabelo preto, silencioso, para lá do

– Sim mãe

quase não falava, nem o pai, de exaltação fácil, era capaz de lhe dar um berro. Toda a vida só fez o que quis. As pessoas tentavam uma censura tímida, ele concordava

– É verdade

e o que se podia acrescentar depois de tanta compreensão da sua parte? Entrou para o seminário, com imenso desgosto do pai, a casa a encher-se de padres que o tentavam convencer da bondade da decisão do Pedro, e quando, resignado, o pai declarou à mãe

– Pelo menos vamos ter quem nos feche os olhos

O Pedro saiu do seminário e ofereceu-se para a guerra em África para despachar o assunto. Novo drama.

– A guerra é perigosa
– Sim pai
– Arriscas-te a morrer lá
– Sim pai

só veio a Portugal uma vez dado que parece que aplicou uns estalos num polícia que lhe bateu num dos soldados, penso que esteve em Cabinda e depois, bastante tempo acho eu, internado no Hospital Militar de Luanda e pouco mais conhecemos porque ele não falava. Voltou, matriculou-se em Arquitectura, teve cinco filhos de cinco mulheres diferentes, fez parte de um movimento qualquer contra a ditadura, mas nós praticamente nunca soubemos de nada. Dois dos seus filhos morreram bebés. Nunca mencionou isso. Andou pela reforma Agrária. Cantava canções revolucionárias e algumas delas tornaram-se conhecidas. Finalmente, e após vários séculos, lá acabou o curso e começou a trabalhar como arquitecto. A única obra sua de que me falou foi um urinol que fez em Torres Novas. Fiquei cheio de curiosidade de entrar num urinol concebido pelo Pedro mas nunca me mostrou a sua catedral de chichis ribatejanos. Na minha opinião deve ser um mimo, uma espécie de Mosteiro de Alcobaça para bexigas aflitas. Também concebeu um museu para um pintor qualquer, que nem quero imaginar como seria. E continuava lindíssimo, calado e parecia feliz. As mulheres caíam de amor por aquele moreno tão secreto que decerto levantou bem alto, em todos os sentidos, a fama máscula da família. Eu adorava-o. Era impossível não o adorar. Quando estive muito doente veio a minha casa, agarrou-me nos ombros e gritou-me com força enquanto me abanava

– Não me morras, não me morras

foi a única vez que disse palavras diferentes de

– Sim mãe

enquanto as lágrimas lhe corriam pela cara. Não tornei a vê-lo chorar, nunca vi um homem tão cheio de amor. Uns tempos depois, sem idade para morrer, morreu. Estávamos em casa dos pais para o almoço de Natal, o telemóvel do João tocou, o João respondeu sentado, depois continuou a falar baixinho, de pé, depois guardou o telemóvel no bolso, disse num cochicho, para a mãe não ouvir

– O Pedro morreu

atamancámos o resto do almoço, distribuímos meia dúzia de presentes pelas crianças, arranjámos uma desculpa qualquer para a mãe e fomos, os cinco, para o Hospital da Cuf. O Pedro lá estava, quieto, numa cama. Saí do quarto porque o Nuno me levou, a dizer-me

– Anda meu bebé, anda meu bebé

que era uma palavra que eu nunca tinha ouvido chamarem-me. Obrigado, mano. Estávamos todos na merda por causa daquele idiota com a mania de ser original. O Hospital da Cuf tem um pátio cá fora e ficámos para ali, imóveis. No dia seguinte fomos dizer à mãe. Ela, de olhos secos

– Deus tenha misericórdia de mim

a seguir

– Uma mãe não tem o direito de estar viva com um filho morto

e morreu pouco depois, de desgosto. Dantes jantávamos em casa dos meus pais às quintas-feiras e, ao irmo-nos embora, o Pedro e eu, lado a lado no escuro, fazíamos chichi contra a cascata. Agora não tenho mais quem mije ao meu lado.
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