Texto de António Lobo Antunes (escritor
português)
A criança
mais fácil de educar que conheci na vida foi o meu irmão Pedro, porque
dizia sempre que sim.
– Pedro
isto não é hotel
– Sim mãe
– Não
voltas a chegar tarde
– Sim mãe
– O jantar
é às oito e um quarto
– Sim mãe
– E estás à
mesa a essa hora
– Sim mãe
e depois,
claro, não aparecia. Telefonava às dez da noite.
– Onde é que tu estás Pedro?
– Do outro
lado da linha
– E vais voltar
imediatamente para casa.
– Sim mãe
– Pedro tu
tiras a paciência a um santo
– Sim mãe
– Pedro
amanhã não sais de castigo
– Sim mãe
e claro que
saía. A nossa mãe
– Pedro
lembras-te do que eu te disse ontem?
– Sim mãe
– Que
ficavas em casa de castigo
– Sim mãe
– E mesmo
assim saíste
– Sim mãe
– Não achas
que eu devia bater-te?
– Sim mãe
– Fecha-te
depressa no quarto antes que eu perca a cabeça
– Sim mãe
mas como a
porta do quarto e a porta da rua se confundiam, aliás para o Pedro todas as
portas eram portas da rua, descia as escadas outra vez, sereníssimo, sem
pressa, e a nossa mãe, exausta, acabava por desistir pronunciando a frase do
costume
– E uma
luta constante para tudo
que
significava um acto de rendição por absoluto cansaço. O Pedro foi toda a vida
assim porque era irresistível e o seu sorriso, lindo, desarmava o mundo. Não me
lembro de me zangar uma única vez com ele, de qualquer dos meus irmãos se
zangar uma única vez com ele. Não conseguíamos. E depois até fisicamente era
diferente de nós, o único moreno, de cabelo preto, silencioso, para lá do
– Sim mãe
quase não
falava, nem o pai, de exaltação fácil, era capaz de lhe dar um berro. Toda a
vida só fez o que quis. As pessoas tentavam uma censura tímida, ele concordava
– É verdade
e o que se
podia acrescentar depois de tanta compreensão da sua parte? Entrou para o
seminário, com imenso desgosto do pai, a casa a encher-se de padres que o
tentavam convencer da bondade da decisão do Pedro, e quando, resignado, o pai
declarou à mãe
– Pelo
menos vamos ter quem nos feche os olhos
O Pedro
saiu do seminário e ofereceu-se para a guerra em África para despachar o
assunto. Novo drama.
– A guerra
é perigosa
– Sim pai
–
Arriscas-te a morrer lá
– Sim pai
só veio a Portugal uma vez dado que parece que aplicou uns estalos
num polícia que lhe bateu num dos soldados, penso que esteve em Cabinda e
depois, bastante tempo acho eu, internado no Hospital Militar de Luanda e pouco
mais conhecemos porque ele não falava. Voltou, matriculou-se em Arquitectura,
teve cinco filhos de cinco mulheres diferentes, fez parte de um movimento
qualquer contra a ditadura, mas nós praticamente nunca soubemos de nada. Dois
dos seus filhos morreram bebés. Nunca mencionou isso. Andou pela reforma Agrária.
Cantava canções revolucionárias e algumas delas tornaram-se conhecidas.
Finalmente, e após vários séculos, lá acabou o curso e começou a trabalhar como
arquitecto. A única obra sua de que me falou foi um urinol que fez em Torres
Novas. Fiquei cheio de curiosidade de entrar num urinol concebido pelo Pedro
mas nunca me mostrou a sua catedral de chichis ribatejanos. Na minha opinião
deve ser um mimo, uma espécie de Mosteiro de Alcobaça para bexigas aflitas.
Também concebeu um museu para um pintor qualquer, que nem quero imaginar como
seria. E continuava lindíssimo, calado e parecia feliz. As mulheres caíam de
amor por aquele moreno tão secreto que decerto levantou bem alto, em todos os
sentidos, a fama máscula da família. Eu adorava-o. Era impossível não o adorar.
Quando estive muito doente veio a minha casa, agarrou-me nos ombros e gritou-me
com força enquanto me abanava
– Não me
morras, não me morras
foi a única
vez que disse palavras diferentes de
– Sim mãe
enquanto as
lágrimas lhe corriam pela cara. Não tornei a vê-lo chorar, nunca vi um homem
tão cheio de amor. Uns tempos depois, sem idade para morrer, morreu. Estávamos
em casa dos pais para o almoço de Natal, o telemóvel do João tocou, o João
respondeu sentado, depois continuou a falar baixinho, de pé, depois guardou o
telemóvel no bolso, disse num cochicho, para a mãe não ouvir
– O Pedro
morreu
atamancámos
o resto do almoço, distribuímos meia dúzia de presentes pelas crianças,
arranjámos uma desculpa qualquer para a mãe e fomos, os cinco, para o Hospital
da Cuf. O Pedro lá estava, quieto, numa cama. Saí do quarto porque o Nuno me
levou, a dizer-me
– Anda meu bebé, anda meu bebé
que era uma palavra que eu nunca tinha ouvido chamarem-me.
Obrigado, mano. Estávamos todos na merda por causa daquele idiota com a mania
de ser original. O Hospital da Cuf tem um pátio cá fora e ficámos para ali,
imóveis. No dia seguinte fomos dizer à mãe. Ela, de olhos secos
– Deus tenha misericórdia de mim
a seguir
– Uma mãe
não tem o direito de estar viva com um filho morto
e morreu pouco depois, de desgosto. Dantes jantávamos em casa dos
meus pais às quintas-feiras e, ao irmo-nos embora, o Pedro e eu, lado a lado no
escuro, fazíamos chichi contra a cascata. Agora não tenho mais quem mije ao meu
lado.
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