Morreu o Kalú, da maneira mais trágica e ao mesmo
tempo digna. Soa irónico falar em morte digna, se tivermos em conta o abismo de
uma precipitada partida. Daí que seja normal nos indagarmos se as mortes dignas
não podiam ao menos aprender a ser generosas também, a ponto de devolver o ente
querido aos seus, como seria justo.
Graciano António Canhama Sousa, o Kalú, deixava à
vista de todos uma postura de orgulho pelo seu emprego. Apito à boca, estrada,
caos e sol. Era agente de trânsito, função a que emprestava — e digo como quem
o conheceu desde garoto — o dinamismo de aprendiz de mecânico de motorizadas na
oficina de um seu parente de nome Karuta, bem como a visão periférica afinada
na infinidade estatística das partidas de futebol no pelado, lá no bairro da
Santa-Cruz.
Já liberto da farda, Kalú fazia-se o «Lebo-lebo» da
malta, no chão que um dia foi talhão de cana da açucareira 1.º de Maio, lá onde
o Lobito se perde na Katombela. Estatura média, aspecto bem nutrido. É neto de
Tchikulo, oriundo do município do Balombo, um dos primeiros a ter uma moageira
na banda.
Chamado a atender um cenário de acidente na zona da
Baía do Santo António, no passado dia vinte e oito de Outubro, fez-se ao local
para as medições e demais perícia, protegido pela sinalização reflectora dos
cones e pelo bom-senso dos utentes da via que leva à vila piscatória da Baía
Farta. O vazamento de gasóleo decorrente do embate entre as viaturas
sinistradas aconselhava para aquele perímetro a mais prudente das velocidades,
facilitando em certa medida o trabalho dos Serviços de Protecção Civil e
Bombeiros, que cuidavam da lavagem do piso. São aproximadamente vinte e duas
horas, fora das localidades. O que vem a seguir é a polícia que tem a coragem
de contar, que em mim já pouca força resta:
No cumprimento
de mais uma missão, depois de o agente ter fixado cones, foi surpreendido por
uma viatura de Toyota Dina, cor creme, matrícula LBC-18-93, vindo do Sul para o
Norte que, aproximando-se ao local da ocorrência, com velocidade excessiva,
desobedecendo ao sinal ali fixado, se apercebeu do perigo. E na tentativa de
frear a viatura, desviou-se para o lado direito, atropelando mortalmente o
Agente de Trânsito, projetando-o para o veículo ora envolvido no acidente.
Aos vinte e sete anos de idade, o Kalú frequentava
o segundo ano do curso de Direito na Universidade Jean Piaget, provavelmente
perspectivando já uma carreira na corporação, efectivo que era do Comando
Provincial da Polícia Nacional há coisa de cinco anos, com última colocação na
Unidade de Trânsito de Benguela.
Ironicamente, acabou engolido pelo monstro da
sinistralidade rodoviária, quando se encontrava justamente a dar o seu melhor
para combatê-la a pedido da pátria. Oh, amigo meu de infância, embora eu tenha
alguns anitos mais do que ele, no bairro da Santa-Cruz, onde morei entre 1987 e
2008. Sempre que nossos caminhos se quisessem cruzar, não fazia outra coisa,
senão tratar-me por um silabado pronunciamento do meu nome completo,
seguindo-se um elegante gesto de mão à pala.
Kalú foi a enterrar [2013]. Todos o sabiam, e foram ter
com ele, menos eu que passei o dia enfiado num aeroporto e com o telemóvel
inoperante. Paz à sua jovem alma, coragem à viúva e aos dois filhos que deixa.
Foi-se o agente de trânsito, inerte ficou o apito, que não mais se ouviu.
Gociante Patissa, Benguela, 11 Dezembro 2015. In «O Apito Que Não Se
Ouviu», 2015. Pág. 95-96. União dos Escritores Angolanos. 1.ª Edição. Luanda,
Angola. Colecção: «Sete Egos»
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(*) livro de crónicas disponível na Livraria Sucam e na Tabacaria Grilo, em
Benguela, ou na sede da União dos Escritores Angolanos, em Luanda, sita no
Largo das Escolas. Mil kwanzas o exemplar
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