segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Conto | NO REINO DOS RASCUNHOS

O velho estava velho, muito velho, logo doente. Para ser confirmado inerte, só lhe faltava parar o fôlego. Vendo bem, aquilo até podia ter outro nome, respirar é que não era.
Humilhante o que a velhice faz! É que a pessoa já não é pessoa… Onde é que já se viu um rei que usa bacio?! Até em aldeias frequentadas por tigres, hienas e leões, os homens fazem as necessidades longe dos olhos da família: ou atrás da montanha, ou protegidos pela noite. Mas o caso dele era pior, já que desapertava mesmo nas calças, logo um soberano… A sorte era ter bonsvasekulu-vonjango[1] e akwenje-velombe[2] que sustentavam as aparências.
Um ano naquela situação, era inevitável a substituição. E o herdeiro tinha de ser alguém com ligação consanguínea ao soberano, seguindo os paradigmas do poder real. Havendo descendentes, a cadeira não passa para outra família. Ora, tendo filhos machos, estava fora de questão cooptar um sobrinho da linhagem matrilinear, que alguns costumam julgar mais legítimo do que o próprio filho, na desconfiança de que só a mulher conhece em bom rigor o verdadeiro autor da gravidez (mas é melhor não irmos por aí, que isso é maka para outros contos que não este).
O soberano tinha três lares e um bom número de filhos mas, na hora de sondar o sucessor, foi prioridade a casa mais-velha, a da primeira mulher. Teoricamente fácil, mas difícil na prática, pois havia dois filhos varões com a mesma idade, porque gémeos. Normalmente, é mais-velho o que sair primeiro, e ganha o nome de Njamba[3]; o segundo é Hosi[4]; o terceiro, caso se chegue a tanto, é Ngeve[5]. Costuma-se contar com a perícia da mãe em colocar sinal para os distinguir. Mas, oh tragédia, ela fez o trabalho de parto sem assistência, tendo perdido os sentidos a dado momento e com eles a certeza da ordem de nascimento.
Urgia o desempate para o êxito do ciclo milenar. Como?
E lá surgia detalhe de peso para um dos gémeos que, recordo, nada provava que fosse o Njamba. Tinha, sim, uma namorada, cujos pais gozavam de boa reputação, portanto virtualmente com estatuto de casado. Uma vez identificado o sucessor do Rei, aos conselheiros cabia a missão de o formatar, não obstante a irónica fatalidade de não terem sangue nobre nas veias e, por conseguinte, virem a ser súbditos de franganote.
No ano seguinte, a investidura do Rei-filho durante o varrer de cinzas, sete dias após o funeral. Das três ovimbumba[6], a primeira permaneceu naOmbala[7], junto dos filhos. As demais foram devolvidas em cerimónia própria às respectivas famílias, uma espécie de fim de mandato. Eram muito novas, é preciso dizê-lo, e seria escândalo se viessem a ser cortejadas ali. Isso é que não!
Cacimbos e remoinhos dissolvem lágrimas, todas elas, e amainam corações. Cada colheita traz um novo ano, enquanto nos contos e nas canções ganha a cultura. Conversa é a chuva nos trilhos da enxada para bagres de rios e lagos, a semente, o trabalho, a esperança, enfim, a vida que continua.
Quanto mais deslindasse os bastidores do poder, mais inconstante a sensação de realizado. Nem as duas décadas no trono impediam o Rei de viver, às vezes, o reflexo do bambu, em que o diâmetro aparente é proporcional ao vazio interior. E tinha as suas razões. Uma delas era a incerteza da ordem de nascimento, que ditaria quem dos gémeos o mais velho e sucessor. Teria usurpado a predestinação do irmão? De nada adiantava culpabilizar a mãe, cuja perda de sentidos no momento do parto causara tão fatal incerteza. Incomodava-lhe, por outro lado, e talvez em maior grau, uma máxima em particular: «kapiñala ka lisoki la mwenle[8]».
Em salas pequenas, o professor domina a turma, o que não garante determinar de que bunda vem cada peido. Um Rei domina a aldeia, sem que possa localizar precisamente de que boca vem cada má-língua. E as inúmeras madrugadas de insónia levaram o soberano a pensar, a propósito e a despropósito, até brotar uma estratégia de gestão que viria a revolucionar o Reino. Uma vez achada, coube aos assessores convocarem uma espécie de comício.
Na data marcada, os aldeões iam chegando à praça. Nunca são poucos. Mas já o Rei estava debaixo da mulemba, alimentando pelo facto certa especulação, pois era antes de o sol raiar, a hora combinada.
— Serei breve, ó aldeia do meu sangue. — justificou-se o Rei, um tanto misterioso, ao tomar a palavra. — Tenho andado pelas lavras e não pensem que não sinto a alegria do êxito do cultivo. Ninguém lamenta a falta de peixe do rio nem de carne de caça, é porque também estamos bem. Há dez anos e tal que não amarramos gatuno. A nossa aldeia é um espelho de água. Ainda assim, algo me fere o coração. Desde os nossos ancestrais que, na Ombala, a única morte que conta é a do Rei. Será justo?! São os conselheiros que fazem um Rei ao longo das sucessões. Se assim é, está na hora de os homenagearmos!

A assistência não sabia definir o que sentia, pois nunca ninguém ousou pensar até ali. De modo que custava antever aonde o Rei queria chegar. E este continuou:
— Vamos dar o descanso merecido aos nossos vasekulu-vonjango. Duas vezes por semana, pelo menos, é organizar onjuluka[9] para cultivar nas lavras dos nossos vasekulu. Ouvi também que um deles quer casar mais uma mulher e não tem casa. Então, como sempre fazemos, os homens nos adobes, as mulheres no capim e na água e na comida. É ou não é?!
— Éééééé! — ouviu-se a aldeia em coro, satisfeita pelo nobre gesto, mas foi de pouca dura, uma vez que o Rei continuou:
— O mbwale[10] Kataleko vai cuidar do património! — a plateia reagiu com estupefacção, pois tratava-se de um surdo-mudo. Como prestaria contas, se não sabia ler? — Mbwale Ngandu é o conselheiro! — as palmas não conseguiam abafar os cochichos. O nomeado era cego. Como diferenciaria manhã de tarde, nos dias em que faltasse a quentura do sol? — Mbwale Simbwokemba vai cuidar da ordem! — e lá estava outra vez a aldeia a resmungar. Como aplicaria bofetadas correccionais, sendo ele paralítico dos membros inferiores? Pediria ao réu para abaixar?

Se era impensável contrariar abertamente, não se conseguia porém tomar como normal a nomeação de um conselho da Ombala formado na íntegra por ovifeto (rascunhos na língua Umbundu). Pessoa com deficiência fora sempre vista como ocifeto (obra inacabada). Raramente chegava a casar. O ancião Ndya-Ngenda, que nutria mais amor pelo kaporroto do que pelas suas duas mulheres, era impecável em conversas paralelas, quase sempre inconvenientes. A cada surpresa, um franzir de testa e um provérbio de repulsa. «Ocilema vacitaisa, ka vawutola[11]».
Nos protestos alinhavam também, de corpo e alma, progenitores de rascunhos. Mas virulento como o ancião Ndya-Ngenda, não havia. Veio dele este boato: «Soma wakava okuyeva kowiñi, oyongola okuyevelela kongolo[12]». Especulava-se que ao Rei ficaria facilitada a usurpação do património, a cargo de um surdo-mudo, porquanto, e outra vez recorrendo à força destrutiva de um provérbio, «camanle calinga eti mbanje, ka calingile eti mopye[13]». Ao conselheiro faltariam fundamentos para criticar; «ocili viso[14]». Por outro lado, «U kwendi laye ka kukutila ko epunda[15]», daí o paralítico.
O Rei, inspirado num daqueles sonhos reveladores que só aos nobres calham, seguia apenas a recomendação de ter o mais expressivo simbolismo para o exercício assertivo do poder: de vez em quando, um líder precisa de experimentar a cegueira para superar seus medos, da paralisia para a prudência na tomada de decisões, e fazer-se de surdo-mudo para a diplomacia e cortesia. Era isso.
Os percalços da inovação eram logo visíveis no começo das actividades do recém-eleito Conselho da Ombala. Desde que mundo é mundo que os seres humanos estão condenados a minimizar as suas fraquezas, logo com eles não era diferente. Às vezes, com a força dos copos, ficava a nu o revanchismo. Para o cego, o surdo-mudo era inútil, por colocar gestos no lugar das palavras, como se também conseguisse captar movimentos e arco-íris na largura dos olhos. O paralítico julgava-se o maior de todos, na altura que o busto lhe permitia. O surdo-mudo achava despida de sentido a vida, sem ver nem correr. E da Ombala, a rivalidade espalhou-se pelos rascunhos mais anónimos, crescendo as chacotas e a rabugice por conta do favoritismo das famílias.
Tinha chovido a noite inteira. No kimbo, depois da chuva, aos olhos do velho de chapéu, as gaivotas são outras crianças, com a vantagem apenas de andarem mais perto do céu. Manhãs assim, não há como não serem inspiradoras. O Rei dirigiu-se aos conselheiros:
— As mulheres têm a mania de achar que os homens são péssimos cozinheiros, não é isso?
— É sim, ó mais-velho. — anuíram os três em simultâneo.
— Pois, hoje vai ser um dia diferente. — anunciou o Rei. — Vamos almoçar ohita[16] com ocipoke[17] e efwanga[18]. Cada sekulu se encarrega de uma panela. Temos os ingredientes, a lenha, o petróleo e o isqueiro, as panelas de barro também. Portanto, cada um vai preparar a lareira, de uma pedra apenas. É para essas mulheres nos respeitarem.

No fim da tarde, apresentaram-se ao Rei, envergonhados e esfomeados. Fora um fiasco a incumbência. Impossível cozinhar na lareira de uma pedra de apoio apenas. Perceberam então que o poder é uma panela ao lume, que exige equilíbrio entre as três pedras sobre as quais assenta.
Unindo os rascunhos da Ombala, uniam-se os demais. Desde então, vêm conquistando a sua dignidade. Mas não faltam lugares, neste mundo do agreste, onde tarda chegar o exemplo do Reino dos Rascunhos. E de como a luta nasceu, o Rei não esquece nem recalca.

Gociante Patissa, in «Fátussengóla, O Homem do Rádio que Espalhava Dúvidas» (pág. 33-40). GRECIMA. Programa Ler Angola. Luanda, 2014



[1] Anciãos conselheiros.
[2] Milícias.
[3] Elefante.
[4] Leão.
[5] Hipopótamo.
[6] Viúvas.
[7] Aldeia do Soba grande; sede da autoridade tradicional e tribunal.
[8] Substituto é inferior ao dono.
[9] Trabalho colectivo voluntário.
[10] Ancião (enquanto título).
[11] Que o aleijado nasça na família, não se acolhe de outrem.
[12] O Rei fartou-se de ouvir o povo, agora quer conselhos do seu próprio joelho (ditadura).
[13] Coisa alheia é para ver apenas, não para falar.
[14] Verdade é o que for visto.
[15] Não te prepara a trouxa quem contigo não viaja.
[16] Funji.
[17] Feijão.
[18] Folhas de mandioqueira, iguaria conhecida também pelo nome Kimbundu de kizaka.
Share:

0 Deixe o seu comentário:

A Voz do Olho Podcast

[áudio]: Académicos Gociante Patissa e Lubuatu discutem Literatura Oral na Rádio Cultura Angola 2022

TV-ANGODEBATES (novidades 2022)

Puxa Palavra com João Carrascoza e Gociante Patissa (escritores) Brasil e Angola

MAAN - Textualidades com o escritor angolano Gociante Patissa

Gociante Patissa improvisando "Tchiungue", de Joaquim Viola, clássico da língua umbundu

Escritor angolano GOCIANTE PATISSA entrevistado em língua UMBUNDU na TV estatal 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre AUTARQUIAS em língua Umbundu, TPA 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre O VALOR DO PROVÉRBIO em língua Umbundu, TPA 2019

Lançamento Luanda O HOMEM QUE PLANTAVA AVES, livro contos Gociante Patissa, Embaixada Portugal2019

Voz da América: Angola do oportunismo’’ e riqueza do campo retratadas em livro de contos

Lançamento em Benguela livro O HOMEM QUE PLANTAVA AVES de Gociante Patissa TPA 2018

Vídeo | escritor Gociante Patissa na 2ª FLIPELÓ 2018, Brasil. Entrevista pelo poeta Salgado Maranhão

Vídeo | Sexto Sentido TV Zimbo com o escritor Gociante Patissa, 2015

Vídeo | Gociante Patissa fala Umbundu no final da entrevista à TV Zimbo programa Fair Play 2014

Vídeo | Entrevista no programa Hora Quente, TPA2, com o escritor Gociante Patissa

Vídeo | Lançamento do livro A ÚLTIMA OUVINTE,2010

Vídeo | Gociante Patissa entrevistado pela TPA sobre Consulado do Vazio, 2009

Publicações arquivadas