quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Crónica | Devolvida à noite

A vivência do homem resumia-se a umas quantas ruas, a da escola, a do serviço, a das refeições em casa da mãe. Esta última saía-lhe agridoce, por serpentear entre o hospital e a casa mortuária e, como tal, o embaraço em tomar por rotina o contacto com pesares alheios — confundindo-se a origem de pesadelos esporádicos, entre o caminho ou algum prato indigesto.

O ciclo do dia fechava-se faltando poucas horas para o outro. Visto do seu relevo, tudo o resto ficava a norte, noutra margem do século. No dia seguinte, estava outra vez a vida a imitar-se a si própria, nos mesmos caminhos e desencontros. Sorte era não ter de quem se esconder, já que «ofeka yinene ño nda okasi mo lesunga.» (o país só é grande se levas a vida com justiça).

Numa qualquer noite, ia ele a conduzir devagarinho, o que bem podia ser atribuído à digestão, se não à chatice que era ir para a cama com a bomba de embraiagem na cabeça, agendada que estava a oficina para as primeiras horas da manhã. Quando a amizade com o mecânico aumenta, está na hora de nos desfazermos do carro.

Sobre a rotunda do Kulinji, estava uma mulher de dedo em riste, trajo de festa, em dia normal de serviço. Não devia ter mais de vinte e cinco anos. Parecia ter pressa. Não parecia, tinha mesmo! O homem pára, ela ocupa de imediato o assento do morto. «Obrigada, moço! Vamos», apela, como se estivesse a ser perseguida. São dez da noite. A aflição da rapariga, revelada em fracção de segundos, deixa o homem perplexo, pois contrastava com a harmonia que se auferia do lugar.

«De onde vens? Aonde vais?», indaga, como que a ganhar a dimensão real da situação em que acabava envolvido. «Fui atacada há pouco por um maluco. Fomos se esconder numa casa, mas mesmo assim…» Um olhar dos pés à cabeça é inevitável. Tudo muito aprumado, para quem andou a correr. «Maluco, como? Desses sujos, ou alguém que se portava mal?», ainda o motorista inconformado. «Maluco mesmo! Sorte foi a polícia. Pulamos o muro e fugimos. Meu Deus! Nem sei onde está a minha amiga…» O homem disfarça a estranheza, pois os dois agentes na rotunda eram reguladores de trânsito, quando a unidade de antimotins ficava perto dali. Que alvoroço seria tão invisível?


Quanto mais ele tentasse entender o relato, mais ela multiplicava os tentáculos. Melhor era calar, ouvir ou dizer fragmentos apenas. Expressava-se razoavelmente, falava era demais, tornando a conversa em manancial de novos começos, poucos fins à vista. Mas compensava. Era linda. Perfume à medida. «Curva à direita!» Os faróis não ganhavam para a escuridão em bairro emergente a sul de Benguela. Doses de insegurança à mistura. A marcha não permitia mais de dez quilómetros horários, ou não fosse idoso o carro. «Ultrapassaste, a entrada é aquela», repreende, dois quarteirões adiante, como se o homem já conhecesse a casa.

«Sabes, eu sofro na minha irmã. Meu cunhado é português. Tenho que fazer o trabalho de casa. As crianças são chatas! Desculpa, isso não se fala, né?! Tens filhos?», corrige. «Não», responde o homem, «as camisinhas não deixaram». E continua ela: «Só rezo para ter emprego, entrar na faculdade.» Zeloso, o motorista sonda: «Já tentaste concurso público na educação?» E ela: «Ainda não acabei o médio, será que aceitam?»

Ia sugerir um passeio, mas conteve-se, ouvindo a voz interior. A noite saberia melhor o que fazer com a mulher. «Bem, estás entregue, estou com sono. Até mais!» «Obrigada! Qual é mesmo o nome do moço?» A resposta é inconclusiva: «Digo-te se nos voltarmos a ver.»

Aeroporto Internacional da Catumbela, 28 Dezembro 2012

Gociante Patissa, 25 Maio 2013. In «O Apito Que Não Se Ouviu», 2015. Pág. 83. União dos Escritores Angolanos. 1.ª Edição. Luanda, Angola . 2015 Colecção: «Sete Egos»

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(*) livro de crónicas disponível na Livraria Sucam e na Tabacaria Grilo, em Benguela, ou na sede da União dos Escritores Angolanos, em Luanda, sita no Largo das Escolas. Mil Kwanzas o exemplar
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