sábado, 13 de junho de 2015

Reportagem | “Queríamos ser ricos à nossa maneira” - Rui Lavrador e Cristina Mota, de executivos a artesões a tempo inteiro

Texto e fotos: Gociante Patissa


Num encontro casual mas que acabou sendo uma oportunidade ímpar de abordar os desafios ligados à vida artística, o Blog Angodebates manteve, na quinta-feira (11/06), uma conversa descontraída com Rui Lavrador e Cristina Mota, o casal de executivos que um dia decidiu dar azo a uma revolução interior, abdicando dos respectivos empregos no ramo da gestão empresarial, para se dedicar apenas à produção de artesanato. A conversa iniciou na esplanada de um dos restaurantes à Praia Morena e culminou com a visita às peças expostas na “Galeria34”, no mercado Kero, Benguela.

Um novo começo

O par Rui Lavrador (natural de Luanda, 1959) e Cristina Mota (natural do Huambo, 1962) encaixa-se no padrão comum de gente profissionalmente realizada, afinal têm formação e experiência, não só em Angola, mas também com passagem pela Europa. Só que falou mais alto a ruptura em busca da realização imaterial, já lá vão dois anos.

“Ricos? Com a idade que temos, já não acalentamos esta possibilidade. Rico é-se aos 30. Disse então: não! Vamos ter uma rica vida, fazer o que queremos e desfrutar do que fazemos. Queríamos ser ricos à nossa maneira. De forma que quando viemos para Benguela, viemos com este propósito. Despedimo-nos das empresas onde estávamos e arriscamos”, conta Rui, fazendo alusão ao modo agitado de vida na capital do país.

É uma decisão um pouco radical, não? À nossa provocação, Rui foi peremptório: “É, e com alguma coragem! Estamos já na casa dos 50. Sabe que são decisões que muitas das vezes nem os jovens tomam. Ponderam”, frisou, para logo acrescentar: “Decidimos que Luanda já não era sítio para vivermos, não tinha qualidade de vida.” E como os holofotes do mercado tendem a incidir sobre a música, a dança e alguma literatura, quisemos saber se no artesanato a clientela satisfaz. Quanto a isso, Cristina não tem dúvidas: “Satisfaz! Tem sido muito boa. Acho que até ultrapassou as expectativas”.

Embora tendo nascido no Huambo, foi na cidade do Lobito que Cristina viveu a sua infância. E ao longo destes anos, o casal vinha cá passar o fim-de-semana sempre que as folgas laborais o permitissem. “Numa dessas viagens, compramos umas cabaças no Kwanza-Sul. E começamos o nosso trabalho manual aí. A Cristina já tinha algum passado nessa área porque, nos tempos disponíveis, ia transformando chinelas em um fim qualquer. Começamos a fazer as cabaças decorativas, as pessoas gostaram e nasceu aqui a ideia de ir desenvolvendo o trabalho artesanal e a nossa habilidade”, lembrou Rui.

Projecto Artesanato Angola CR e a transposição dos indicadores de forma

Inscrito na União Nacional dos Artistas Plásticos (Unap) e na representação do Ministério da Cultura em Benguela, o projecto “Artesanato Angola” tem obras expostas em galerias e unidades hoteleiras nas províncias de Benguela, Kwanza-sul e Luanda. Huila é o próximo passo. Outro reconhecimento relevante prende-se com a presença na Expo Milão, Itália, com obras requisitadas para o pavilhão de Angola.

“Temos vendido essencialmente para cidadãos nacionais – têm sido os nossos principais clientes –, a alguns estrangeiros. Temos recebido muitas solicitações para o exterior. Daí que nós, nos próximos meses, possamos vir a dar andamento a projectos que já temos em mente, que era o desenvolvimento de uma escola de formação profissional, com toda a disponibilidade, desde o início, manifestada pelo Instituto Piaget", disse Rui.

Com a estética assente numa constante reinvenção e até mesmo transposição dos seus próprios indicadores de forma, onde fragmentos da natureza morta renascem, por exemplo, em simbiose com dispositivos eléctricos, as obras deste projecto remetem o apreciador à sensação de “rio sem margem” (se o leitor nos permite cabular o escritor Zetho Cunha Gonçalves).

“Nós estamos classificados pela Unap como artistas plásticos. Também nos consideram escultores. Aqui em Benguela, obtivemos na Cultura o certificado de artesãos. Obviamente esses títulos nunca foram coisas que nos preocupassem muito. Queremos é trabalhar dentro da legalidade”, defende Rui Lavrador.

E quanto ao nome Artesanato Angola CR, Rui declarou que nasceu pela facilidade de posicionamento nas redes sociais e por ser também um objectivo incentivar os artesões a perceberem que há caminhos para além daquilo que têm feito até agora. “Trazemos uma visão do mundo, da cultura lá de fora e é um testemunho que queremos passar a artesões locais que não tenham beneficiado desta experiência de viajar, conhecer outras culturas. E depois porque, de alguma forma, foram cilindrados pelo comércio da arte vindo da Ásia (arte entre aspas, porque aquilo, de arte, não tem nada)", rebateu.

Este ponto está ligado, aliás, à vertente honestidade intelectual, pois é fácil constatar, nos nossos mercados, um amontoado de cópias à venda, quando o ideal de arte reside em ser-se peça única. “Isso já passa pela Cultura. Porque a Cultura tem que fazer o cadastramento dos artesões e tem que ter a certeza que aquela pessoa que está ali é um artesão, que dali vai sair uma peça de artesanato. Quem gosta de arte, quem percebe de arte, sabe ver a diferença entre uma réplica e uma obra original”, asseverou Cristina.

Artesanato no Brasil representa dois por cento do PIB

As necessidades de apoio do projecto incluem ferramentas de trabalho, o fomento de espaços destinados a trocas de experiência entre fazedores de arte, bem como a bonificação dos custos de viagens, tomando em conta o volume e peso das obras. Mas não há, como dizem, um constrangimento que não aguce o engenho. E porque de cumplicidade, determinação e sonhos se faz a estrada de êxitos do casal, Rui e Cristina ambicionam efectivar o sonho da escola de formação profissional.

“Pensamos sempre e por aquilo que temos ouvido do que se faz lá fora. O Brasil tem a maior indústria de artesanato do mundo, representa quase dois por cento do Produto Interno Bruto, é uma soma de umas largas centenas de milhões de dólares por ano. Emprega umas largas dezenas de milhares de pessoas”.

O êxito brasileiro, segundo o nosso interlocutor, tem por base a constituição de cooperativas, o incentivo ao trabalho do artesão, a canalização do trabalho produzido para centrais que posteriormente distribuem para todo o território o artesanato nacional. “O essencial nisso é a formação. Formar os jovens para poderem desenvolver o trabalho sozinhos e criar fontes de rendimento para si e para as famílias”, conclui Cristina.
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2 Deixe o seu comentário:

mariagomes disse...

muito bom!, mereciam este destaque, são dois artesãos de primeiríssima qualidade.

Angola Debates e Ideias- G. Patissa disse...

Todo apoio é pouco, amiga Maria. A história deles é também inspiradora. Aquele abraço da sua Benguela

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