quarta-feira, 24 de junho de 2015

Crónica | A armadilha da infância cíclica

Ficou-me a imagem, melhor dizendo, a lição sobre rodas. Íamos um colega e eu na cabine do Toyota land cruiser (que chamo "vagão", também conhecido como chefe máquina). Vínhamos de mais uma das habituais reuniões de coordenação com parceiros, ao tempo em que servi o sector das ONG's internacionais. 

A nossa relação não era das mais simpáticas; de um lado as questões geracionais, de outro a pouco definida hierarquia, num quadro em que na prática éramos cada um "a segunda pessoa" na estrutura.

Explico: ele era responsável administrativo, numa época em que o posto tinha dias contados por falta de fundos autónomos, ao passo que eu era a segunda pessoa do projecto que sustentava a instituição e ambos reportávamos a uma só especialista "expatriada". 

As férias da chefe propiciavam momentos de proximidade entre nós, desde que eu deixasse o mais-velho julgar-se meu chefe em coisas como assinar o livro de ponto, requisitar fundos e afins (quando na verdade tinha já tudo planificado com a chefe e os activistas sob minha coordenação). Pelo que o meu diálogo com o colega limitava-se ao essencial. 

Continuando, voltávamos ao serviço, com ele ao volante, quando um homem de meia-idade se pôs a atravessar a estrada sobre a rotunda de uma intensa via, porque nacional, sem passadeira. Carregava um cesto de pães sob o sol abrasadar, suor e salitre em sua pele, calcanhares que nem a cobra morderia, de tão empoeiradamente húmidos. Não me lembro de o ver levantar a cara. Seria do peso dos pães que ele não comeria ou se nutria alguma esperança de tropeçar em qualquer nota monetária que o milagre faria germinar no chão? 

Baixei o vidro, da minha janela de boleante, para dizer qualquer coisa ao peão, capaz de lhe lembrar da condição elementar para se atravessar uma estrada: olhar para os lados. "Deixa, Daniel...", saiu-lhe do fundo da alma com um toque súbito no meu ombro, "é o nosso povo!" 

Calei-me, ou seja, nem fui a tempo de emitir a tal repreensão ao "ajudeiro", que é como se chama o ganha-pão de que empresta o dorso para carregar mercadoria de outrem, certamente nunca mais pesada do que o fardo que é sobreviver. "É o nosso povo!" 

Mas ainda hoje, sempre que oiço falar de adultos vítimas de atropelamento, dá-me uma imensa vontade de procurar saber: mas onde é que depois eles alienam o saber com que nos mantemos a salvo, essa coisa mágica de olhar para os lados? E chego a pensar na armadilha da infância cíclica. Sim, os adultos, uns pelo peso da vida, outros inebriados pela pluma da abundância, são apanhados pela armadilha da infância cíclica. E temos de lhes devolver os seus próprios conhecimentos e regras, com os quais nos criaram e mostraram o mundo.

Agora que penso nisso, vem-me à memória uma citação, segundo a qual "o homem vive aprendendo um pouco a cada dia porque se vai esquecendo um pouco todos os dias".

Gociante Patissa, Benguela 24.06.2015
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