Ficou-me a imagem, melhor dizendo, a lição
sobre rodas. Íamos um colega e eu na cabine do Toyota land cruiser (que chamo "vagão", também conhecido como
chefe máquina). Vínhamos de mais uma das habituais reuniões de coordenação com
parceiros, ao tempo em que servi o sector das ONG's internacionais.
A nossa relação não era das mais simpáticas; de um
lado as questões geracionais, de outro a pouco definida
hierarquia, num quadro em que na prática éramos cada um "a segunda
pessoa" na estrutura.
Explico: ele era responsável administrativo, numa
época em que o posto tinha dias contados por falta de fundos autónomos, ao
passo que eu era a segunda pessoa do projecto que sustentava a instituição e
ambos reportávamos a uma só especialista "expatriada".
As férias da chefe propiciavam momentos de
proximidade entre nós, desde que eu deixasse o mais-velho julgar-se meu chefe
em coisas como assinar o livro de ponto, requisitar fundos e afins (quando na
verdade tinha já tudo planificado com a chefe e os activistas sob minha
coordenação). Pelo que o meu diálogo com o colega limitava-se ao essencial.
Continuando, voltávamos ao serviço, com ele ao volante,
quando um homem de meia-idade se pôs a atravessar a estrada sobre a rotunda de
uma intensa via, porque nacional, sem passadeira. Carregava um cesto de pães
sob o sol abrasadar, suor e salitre em sua pele, calcanhares que nem a cobra
morderia, de tão empoeiradamente húmidos. Não me lembro de o ver levantar a
cara. Seria do peso dos pães que ele não comeria ou se nutria alguma esperança
de tropeçar em qualquer nota monetária que o milagre faria germinar no chão?
Baixei o vidro, da minha janela de boleante, para
dizer qualquer coisa ao peão, capaz de lhe lembrar da condição elementar para
se atravessar uma estrada: olhar para os lados. "Deixa, Daniel...",
saiu-lhe do fundo da alma com um toque súbito no meu ombro, "é o nosso
povo!"
Calei-me, ou seja, nem fui a tempo de emitir a tal
repreensão ao "ajudeiro", que é como se chama o ganha-pão de que
empresta o dorso para carregar mercadoria de outrem, certamente nunca mais
pesada do que o fardo que é sobreviver. "É o nosso povo!"
Mas ainda hoje, sempre que oiço falar de adultos
vítimas de atropelamento, dá-me uma imensa vontade de procurar saber: mas onde
é que depois eles alienam o saber com que nos mantemos a salvo, essa coisa
mágica de olhar para os lados? E chego a pensar na armadilha da infância
cíclica. Sim, os adultos, uns pelo peso da vida, outros inebriados pela pluma
da abundância, são apanhados pela armadilha da infância cíclica. E temos de
lhes devolver os seus próprios conhecimentos e regras, com os quais nos criaram
e mostraram o mundo.
Agora que penso nisso, vem-me à memória uma
citação, segundo a qual "o homem vive aprendendo um pouco a cada dia
porque se vai esquecendo um pouco todos os dias".
Gociante Patissa, Benguela 24.06.2015
0 Deixe o seu comentário:
Enviar um comentário