Gociante Patissa, Benguela (ensaio publicado via Jornal Cultura, edição como ilustra a foto)
Parte o presente exercício de dois relatos de um casal que
revelava semelhanças num gesto das respectivas mães, os quais, vistos além da
coincidência, fornecem matéria antropológica. Trataremos a mãe do marido por
Njali-A e a da esposa por Njali-B, correspondendo “onjali” ou “njali”
a pai/mãe, tutor/a. O que as separam são uma década e cerca de 600 km.
Njali-A vivia em Kutenda, município da Tchicomba, na Huila, e o gesto deu-se na
década de 1970. Por sua vez, njali-B vivia no Monte-Belo, município do Bocoio, em
Benguela, e sua acção deu-se na década de 1980.
Njali-A e njali-B têm em comum o papel de “ndona yukulu” ou “ukãi
watete”, esposa mais-velha ou
primeira mulher, traduzindo literalmente. É o estatuto social
dado às primeiras esposas, em contextos de poligamia, onde, independentemente
da idade, das demais “sepakãi” (rivais) a sociedade espera uma postura de “irmãs mais-novas”.
Os Ovimbundu são o grupo etnolinguístico de origem Bantu que
predomina no centro e sul de Angola, em seis das 18 províncias: Kwanza-Sul,
Benguela e Namibe (costa), Bié, Huambo e Huila (planalto centro e sul).
Representam 1/3 da população, num país com 16 milhões de habitantes, e cerca de
oito grupos de matriz Bantu, sem esquecer os Khoisan,
pré Bantu, e ainda os de ascendência ocidental.
Para Fernandes & Ntondo (2002), citados em Martinho
Kavaya (2006: 54), formam o grupo etnolinguístico, Ovimbundu, os va Viye,
Mbalundu, Sele, Sumbi, Mbwei, Vatchisandji, Lumbu, Vandombe, Vahanya, Vanganda,
Vatchiyaka, Wambu, Sambu, Kakonda, Tchicuma, e este grupo corresponde ao maior
étnolinguístico angolano (acima de 4.500.000 pessoas) e comunica-se na língua
Umbundu.
Chama atenção, entretanto, a proximidade estatística entre o
trabalho de Fernandes & Tondo e o do estudioso António Correia (2012), como
podemos verificar num trecho do seu Blogue: “Distinguem-se pelo menos 18 grupos
Ovimbundu diferentes: Mbailundu, Vyié, Wambu, Ngalangui, Quibulos, Ndulu,
Quinolos, Kalukembes, Sambu, Kakonda, Quitatos, Sele, Ambuis, Hanhas, Gandas,
Chikuma, Ndombe, Lumbu. É o maior grupo etnolinguístico angolano (cerca de
4.970.000 pessoas)”.
Até que sejam conhecidos os resultados do Censo Populacional
em curso, uma iniciativa governamental que visa contornar o facto de os dados
oficiais datarem de há quatro décadas, toda a estatística neste sentido está
sujeita ao benefício da dúvida. Entretanto, estamos confortáveis em acrescentar
que nem sempre o número de falantes é indicador de etnia, um fenómeno que
podemos atribuir a dois factores: (a) a motricidade das comunidades de
trabalhadores do CFB (Caminho de Ferro de Benguela), do Lobito (Benguela,
litoral centro) ao Luau (Moxico, extremo leste e de predominância Lunda Cokwe);
(b) o êxodo para as cidades e/ou zonas mais seguras durante as três décadas de
guerra civil, onde poderá contar o facto de a UNITA (rebelião armada) ter
imposto o Umbundu como símbolo de afirmação patriótica nas zonas sob seu
domínio.
As principais decisões do lar entre os Ovimbundu, à
semelhança de vários outros grupos de Origem Bantu, reservam-se ao marido. Uma
dessas é referente à atribuição do nome ao recém-nascido, como aliás o realça Avelino
Sayango (1997: 8): “É o pai, e não a mãe, que tem a prioridade na escolha de um
membro da sua família para ser o sando
(chará) do primeiro bebé, quer se trate dum menino ou duma menina”.
Este exemplo é apenas uma amostra daquilo que são os
aspectos decorrentes da atribuição de papéis com base no género em culturas de
pendor “machista”, onde a participação da mulher na tomada de
decisões é (aparentemente) nula, pois este ser secundário tem
subtilezas para vincar posição. Falaríamos por exemplo da influência que as
mulheres vêm tendo sobre as mais temidas figuras e tramas da humanidade.
No contexto das comunidades rurais que abordamos, a maioria
das mulheres dedicava-se ao cultivo e lida doméstica, salvo poucas excepções
para confirmar a regra. Eram, então, as que tinham formação elementar para o
professorado ou enfermagem. O mesmo se aplica aos homens, no cultivo e na caça,
excepto uns poucos na função pública, com ofício, ou então para-militares.
Njali-A era esposa de motorista hospitalar e Njali-B de funcionário
administrativo. Seus maridos eram de concentrar as várias esposas num mesmo
espaço, chamemos-lhe de quintal, e com isso uma convivência intensa entre as
“irmãs” rivais. Até aos dias de hoje, há quem o pratique nos centros urbanos, o
que é culturalmente normal, mas nem por isso fácil de gerir.
Njali-A adoptou um cão, a quem atribuiu o nome de “Notole”. Njali-B
intitulou o seu cão “Cohinla”. A palavra é ícone, o que seria pleonasmo referir, já que é sobre o adágio que
assentam os nomes dos Bantu. Segundo Francisco Xavier Yambo (2003: 23), o ocimbundu acredita na interacção e
correlação de forças entre todos os seres viventes. Outro grupo de nomes, o
mais variado, vai das circunstâncias palpáveis em que a criança nasce à
preocupação de perpetuar a memória deste ou daquele ente-querido.
Ora, tirando proveito deste paradigma, e na aparente banalidade
do direito de dar nome a um animal doméstico, Njali-A e Njali-B vincam
posições: “Notole, ndikasi
vesaila; nate ciwa, ndikasi lo kimbo lyetu” (choca-me bem, sou pinto
dentro do ovo; trata-me bem, que faço falta à terra de onde venho).“Cohinlã mange calwa” (é muito
o que se esconde no silêncio de mulher madura). E assim apresentam, não só um
protesto passivo-agressivo aos maridos, mas também uma denúncia à comunidade
sobre o que lhes intriga da poligamia, durante o ciclo de vida do cão, qual
sino diário.
Numa perspectiva inversa, e reportando-nos ainda à comuna do
Monte-Belo, vem outro exemplo: “Kanjila-Komange” foi a alcunha
que certo homem chamou para si.“Kanjila
komange kakwete lapa katekula, lapa kasumbiwa” (por mais insignificante que possa parecer, o passarinho-mãe tem
um ninho a sustentar e exercer autoridade).
Podemos concluir que não andará muito longe da verdade a
hipótese de que a atribuição de nomes proverbiais a animais como forma de
protesto é prática antiga entre os Ovimbundu e provavelmente de outros povos
Bantu, dada a semelhança entre Njali-A e Njali-B, que vivem em épocas e lugares
distantes. Não nos parece, por outro lado, que seja ao acaso também que um
homem adoptou a alcunha para reclamar respeito.
Obras
Citadas
Correia,
A. (2012, Abril 25). O PENSAR ANTROPOLÓGICO ANGOLANO. Blogue de António
Correia , pp.
http://jornalistacorreia.blogspot.com/2012/04/o-pensar-antropologico-angolano.html.
Kavaya,
M. (2006). EDUCAÇÃO, CULTURA E CULTURA DO ‘AMÉM’: Diálogos do Ondjango com
Freire em Ganda / Benguela / ANGOLA. Dissertação apresentada ao Programa de Pós
Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas, como requisito
parcial à obtenção do título Mestre em Educação (p. 54). Rio Sul, Brasil:
Pelotas.
Sayango,
A. (1997). O MEU PAI (Vol. 1). Luanda, Angola, Angola: Barquinho – Livraria
Evangélica.
Yambo, X.
F. (2003). PEQUENO DICIONÁRIO ANTROPONÍMICO UMBUNDU. Luanda, Angola: Editorial
Nzila.
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