Há coisa de duas semanas, fez eco em terras lusas a criação de um ponto de recolha para TVDE (transporte em veículo descaracterizado), no Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, onde até então imperava o monopólio dos taxistas convencionais, distinguíveis pelo preto-e-verde.
De resto, a poucos meses de receber a visita do Papa na Jornada Mundial da Juventude 2023, a capital de um país católico até à última pedra da calçada apressa-se nos detalhes para que tudo corra a contento. A Jornada papal, que acontece na primeira semana de Agosto, deixará na história a confirmação ou a infirmação de uma estimativa na ordem de um milhão e meio de visitantes, sem falar do orçamento módico, como quem diz, que o governo dedica aos preparativos do evento, qualquer coisa como trinta e cinco milhões em moeda local.
Ao longo dos anos a classe dos taxistas, organizada em associação, reivindicava para si a legitimidade do nicho, greves e protestos de congestionar a cidade metidos ao barulho, como meio de afastar da placa quais cães sarnentos motoristas de aplicativos, na sua maioria asiáticos imigrantes, vistos como concorrência desleal, informal e com fraca perícia na estrada.
Mas o que temos nós, mwangolês, a ver com a maka alheia?! Estará o leitor ou a leitora a indagar, com alguma razão talvez, caso não possua passaporte. Mas então quando a gente vai ao SME tirar o documento, não é tendo já na cabeça que Portugal é apenas o quintal ao lado?!
Ora, nos últimos anos nada mais tirava o prazer de voar entre Luanda e Lisboa do que as finais das quase oito horas, isso para quem não tivesse um transporte familiar à espera no desembarque e/ou que não dominasse as rotas do Metro, quanto mais a dos autocarros. Aí o avião poisa o trem de aterragem, os mais medrosos a libertarem aquela salva de palmas de medo disfarçadas de elogio à tripulação. Nos ouvidos, ainda o efeito da pressurização, as nádegas anestesiadas de tanto sentar, nas pernas a fadiga da eternidade na fila do SEF, enfim.
Como se isso fosse pouco, o cidadão até já reza para lhe não calhar um taxista mancomunado com seu taxímetro talhado a Alibaba. Ademais abundam relatos de puro assalto ao bolso dessa forma sofisticada. A título de exemplo, este ano mesmo, para não utilizarmos cordas para ilustrar cobras quando até temos uma delas à disposição, a um confrade nosso foram cobrados pouco mais de vinte Euros na corrida entre o Aeroporto e o Campo Pequeno, ao passo que um seu colega desembolsou apenas seis Euros em iguais circunstâncias.
De modo que, salvaguardadas as excepções para os taxistas bons, a existência de serviços da categoria TVDE vem oferecer uma alternativa face à criatividade de facturação, aqui para não dizer só assim, sem preliminares… roubalheira descarada.
O diferencial mora no facto de a plataforma electrónica definir de antemão o custo da corrida. É para todos os efeitos o jogo mais transparente, comparado com o de conhecer o custo da corrida no destino, como ocorre no taxímetro, num jogo em que o fornecedor de serviço é jogador e árbitro numa mesma assentada, não havendo VAR que nos valha na hora da aflição.
Já agora, como funciona, não é? Ora bem. Para chegar ao ponto de recolha, é só virar à esquerda quando tiver recolhido a sua bagagem, prosseguir direitinho até chegar ao final da rampa do átrio de desembarque, onde deverá contornar o balcão de uma multinacional de cafés ali. Continue a marcha até chegar ao parque P2, o que leva um minuto. E pronto, já está! E mais, a sinalética lá estará a indicar o caminho, facilitando a saída e a gestão de tempo.
A animosidade entre taxistas e a concorrência é na realidade um fenómeno sociológico que tem tudo para ser observado muito além da primeira vista. Para quem como o vosso escriba por cá passou em 2010 e mais tarde 2016, é notório o aumento da mão-de-obra imigrante não qualificada de predominância asiática, traço hindustão, o que estimula a reacção natural de resistência por parte de uma sociedade que se vê submetida a um novo ciclo de “invasão”, desta vez com choque cultural acentuado, a começar pelo muro farpado da língua.
Da Índia, Bangladesh, Paquistão, Nepal, para só citar estes, chegam homens e mulheres, não muito tempo depois seguidos por parentes e conhecidos, na esperança de conseguirem melhores condições de vida, ocupando empregos precários nada apelativos ao ocidental.
Na semana passada, desabafava comigo um senhor do Nepal o seu cepticismo. É que o novo parque para os TVDE em determinados horários regista enchente, para a insatisfação do cliente que fica muito tempo à espera e se arrisca a pagar penalização. E como hoje em dia a opinião do cliente conta muito nas plataformas de marketing digital, o motorista que acumula avaliações negativas fica com o peso da cruz. O aluguer da viatura para o serviço, à taxa de pouco mais de duzentos Euros semanais, num carro movido à electricidade e que pára três horas ao fim de sete horas para abastecer, é outro calcanhar de Aquiles.
Mas nem tudo são lamentos no contacto geralmente em inglês com os irmãos da Ásia. Há também um tanto de temerário e a roçar a conspiração, pelo menos para bichos com DNA de jornalismo e com o automatismo de radiografar cada pergunta pela intenção subjacente.
Num desses dias, uma jovem senhora pôs-se a perguntar o que me trazia a Portugal. Fui-lhe omitindo q.b.com sorriso tenso, uma vez a outra brindando-lhe com mentiras de algibeira. Vem de Angola? Angolano é mais bem educado que cabo-verdiano. E eu a pensar: ela dirá o mesmo ao moçambicano sobre nós, certamente. Vocês são muito ricos, não é? E eu: bem, realmente há gente rica, como em todos os países. E lá foi desenrolando o questionário, auxiliada pelo trânsito congestionado de fim de tarde ali entre o Rossio e o Marquês.
Às tantas insistia em dar-me o seu contacto. Queria saber onde me encontrava hospedado, ao que não precisei de recriar nessa parte, afinal não tinha mesmo a questão resolvida. Et voilà! A motorista precisava de alguém que lhe safasse da aflição de legitimar o arrendamento para um parente seu, que não conseguia pagar um apartamento sozinho na Amadora. Como tu és estudante, vão-se entender bem; um quarto para ele e outro para ti. Liga amanhã para veres a casa, sim? Respondi OK, não via era a hora de apagar o contacto dela, mal descesse do carro!
Gociante Patissa, Lisboa, 04 Junho 2023
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