De aniversário também está o Carlos Marques, aquele jornalista da Rádio Lobito, visionário e "cúmplice" que marcou a nossa transição de verdes jovens para homens profissionalmente úteis para a sociedade, entre 2000 e 2006, no Lobito. A gratidão, minha e da AJS (Associação Juvenil para a Solidariedade), para não dizer da sociedade "social e cultural" benguelene, é eterna. Lembro-me da primeira entrevista que nos concedeu (a mim e o Edmundo Francisco, salvo erro), com o estúdio ainda em obras de polimento do taco de madeira, o que obrigava a falar quase que ajoelhados, corria o ano 2001 e o tema era a divulgação do primeiro grande evento da AJS , nossa ONG ainda nos seus primórdios), que era alusivo ao Dia D'África, que veio a ter lugar no salão do bairro Santa Cruz. Pôs-nos a falar em directo, sem ensaios nem filtros, o que não deixava de ser risco, num período em que a guerra civil perdurava. Guardo de esquebra a noção de sobrevivente de naufrágio no Egipto Praia, onde mostrou que nada melhor que um peixe Tudo de bom, caríssimo.
(Foto por Ananias Bento)
A propósito, recordamos um texto aqui em tempos partilhado em sua homenagem
Crónica | UMA VÉNIA AO REPÓRTER CARLOS MARQUES
Ao contrário da tendência que se assiste nas últimas duas décadas, a da consagração do jornalismo ou estrelato de cabine, a reportagem é o género jornalístico mais completo. Pelo menos assim diziam alguns manuais de jornalismo que andamos a devorar ainda na década de 1990 do século vinte. Então porquê?
Porque a reportagem carrega um pouco de crónica, outro pouco de notícia, mais outro pouco de análise, e mesmo opinião, onde o estilo do autor faz a diferença dentro da mesmice que seria a redacção de só dar resposta literal a «O quê, Onde, Quem, Quando, Como e Porquê». Repórteres há vários, incluindo os que a gíria jornalística em rádio e TV trata por “mudos”, convencionalmente afastados do microfone devido a debilidades na dicção, na articulação ou no domínio da língua de trabalho. Estes fazem a recolha e depositam o material na Redacção, cabendo ao editor indicar quem “põe a voz na peça”.
Como é de imaginar, é nas situações adversas que o verdadeiro profissional emerge. O estilo, o faro, o sentido de persuasão e a resiliência costumam ser determinantes na hora de arrancar da fonte aquela cirúrgica informação, parecer ou estado de alma, seja a propósito do facto do dia, seja uma radiografia social de determinado grupo, entre a interminável lista de motivos de cobertura.
Ontem, ao ouvir o noticiário vespertino da Rádio Lobito, vi-me obrigado a fazer uma vénia ao trabalho do repórter Carlos Marques (que não faz parte dos “mudos”), numa radiografia pelos bairros do subúrbio do Lobito, visando auscultar os moradores sobre a ausência (já se passou da condição de falhas) de energia.
A dado momento, surge um impasse. Dois interlocutores revelam-se agastados, não acreditam em mais nada, nem em ninguém. Já por lá tinham passado várias equipas, a da própria companhia eléctrica inclusive, mas nada de resolver o problema. Nestes casos, é sobre o repórter que o cidadão descarrega o rancor, o que exige um grande sentido de tacto para a necessária isenção e levar o interlocutor a falar para o microfone.
O ponto mais alto de toda a reportagem, a meu ver, dá-se na entrevista a uma anciã, voz trémula, aparentemente doente. A caminho da terceira pergunta, a anciã diz-se pouco confortável, talvez a cabeça a chatear. Instintivamente, o repórter flexibiliza o registo do diálogo, abandona a língua oficial e fala a língua materna da interlocutora, o Umbundu. Ela até já falava com o fôlego redobrado, discurso a fluir impecavelmente.
Mesmo sendo bilingue, um outro repórter desistiria, na mania das "finuras" e exclusão de classes que grassam na comunicação social, até porque a estação tem uma Editoria de Línguas Nacionais. O Marques, não. Fora da pauta, mostrou saber do valor profundo da língua na vivência do cidadão comum, entre a cultura e a sociolinguística.
Ora, uma vez ganha a confiança e vendo que o repórter se identificava com ela, vieram revelações marcantes sobre o modo de vida nos bairros emergentes, onde a energia falha, o combustível foge do alcance para alimentar o gerador, sem falar das pilhas que se esqueceram de alimentar a lanterna. O grande medo é que a noite dure para sempre.
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