| crónica semanal no Jornal de Angola na coluna "Carta de Lisboa" (3) | Alegre ia o sol de primavera por volta das 18h00 quando desembarquei do autocarro 758 ali pelo Largo do Rato, onde desponta vistosa e com ar renovado a sede do PS, Partido Socialista que governa o país. Já lá vão três meses desde que o troço entrou na minha rotina semanal por conta de mais uma alfabetização que entendi frequentar. Já conto em quê. Mas isso é aos sábados. No dia a que me reporto, quarta-feira, o motivo era diferente. Ia ao encontro da amiga Nanda Bandos para nos irmos embebedar com o néctar da poesia.
Sou o primeiro a chegar e enquanto espero (não podendo fazer já poemas nem cantar uma canção, que jeito para isso lá tem o nosso Carlos Baptista), coloco o olhar em bigamia entre o agradável caos da confluência de encruzilhadas do Largo e a fachada da minha escola de piano, aquele instrumento que me tem sido uma terapia acidental, como fingiria o outro.
E assim penso nas desculpas que fico a dever ao meu primo Victor Isaac Paulino, o Paizinho, infelizmente já ausente do mundo dos vivos, pela censura de que chegou a ser alvo nas minhas mãos, no dia em que deu por concluído o curso de piano, ainda longe de vencer a meta do segundo mês da coisa. O aprendizado do universo das teclas com partituras e afins, sei-o hoje eu bem, não é sobre o achar prazer; é mais sobre o saber não desistir. No caso aqui do cidadão, o poço de talento, afabilidade e profissionalismo que é a jovem professora que calhou na rifa, Cláudia Correia de sua graça, até alivia os pedregulhos da jornada.
Não tardam dez minutos, a amiga surge e seguimos a marcha pela rua de São Bento, aquela que vai dar ao palácio presidencial, passando pelo Centro Cultural de Cabo Verde. De referências culturais nesse perímetro não é tudo, plantada que está nele também a Livraria Histórica Ultramarina. A escassos cem metros, toca a desviar à direita, deixemos os aposentos do presidente Marcelo “tio Celito” para outras agendas que não agora.
Até porque o nosso destino chama-se Livraria Snob, encravada na Travessa de Sta Quitéria, n.° 32-A, que na última quarta-feira de cada mês encarna o consulado angolano da poesia. É para já a analogia que mais parece fazer jus à envergadura da tertúlia "POÉTICAS AFRO-ATLÂNTICAS EM LISBOA", maiúsculas propositadas, um evento de pura diplomacia cultural aplicada que acontece de Janeiro a Novembro, menos Agosto. A nobre ousadia é do Clube Literário Kalunga, com os poetas João Melo e Zetho Cunha Gonçalves a marcarem o compasso, este último também nas vestes de mestre de cerimónia.
Na edição de Maio findo, a poeta Ana Paula Tavares foi a grande homenageada, num recital que passeou pela poesia da autora na voz de diversas gerações e nacionalidades que animam o Clube Literário Kalunga. Destacaria Lopito Feijoó, João Melo, Zetho Cunha Gonçalves e Sandra Poulson (Angola), Regina Correia, Manuel Alberto Valente e Nuno Júdice (Portugal), Demétrio Panarotto, Ozias Filho, Ronaldo Cagiano, Fredy Maia e Geni Mendes de Brito (Brasil), Tony Tcheka (Guiné-Bissau) e Júlia Wong (Perú), havendo mesmo quem suspeite que o autor destas linhas também usou da palavra. E quem sou eu para duvidar, não é?
Maria João Cantinho cuidou de resenhar "O sangue da buganvília", obra mais recente de Ana Paula Tavares, o reeditar, passadas duas décadas e sob chancela da Editora Caminho, de uma colectânea de crónicas publicadas no ido ano de 1998. Houve ainda vez para a prelecção sobre a novíssima poesia angolana, a cargo do poeta e académico Kaio Carmona, que há três anos faz o traço de união entre Angola e Brasil junto da Universidade Agostino Neto, enquanto leitor do Instituto Guimarães Rosa, ligado à Embaixada do seu país em Luanda.
João Melo, que já há muito vem provando que a escrever e a realizar sonhos não é gago, não escondia a felicidade de quem beira celebrar o primeiro aniversário da iniciativa. É um projecto informal, diz, com a pretensão de unir as margens deste grande rio que nos une ao longo da história. Mas a noção de atlântico, completa o poeta, é elástica, vai até ao Perú.
Ana Paula Tavares, a homenageada, na sua modéstia vai agradecendo cada deferência que recebe dos convivas, sintonizada à frequência dos afectos e manifestações literárias de povos unidos por uma língua banhada a sal, como só a da CPLP, na tentativa de unir as muitas margens do atlântico. E toma a palavra para deixar que falem por si e pelas emoções que a atravessam os poemas que um dia gravou em papel, onde a mulher e os desafios na sociedade são retratados com todo o trabalho de lapidação da palavra e inquietação.
A correlação faz-se inevitável entre a novíssima poesia angolana, enunciada por Kaio, e o contributo de uma geração na colheita de novas promessas, como aquela em que a Paula pertence, a dos pilares da Angola independente e da União dos Escritores Angolanos, a qual um dia, em meio a tantas incertezas, amparou jovens com potencial e carisma de um Lopito Feijóo, ainda a emergirem da irreverência dos movimentos literários, na década de 1980.
Kaio Carmona menciona três nomes do conjunto que lhe chega para leitura e convívio, principalmente no meio luandense, são eles Cíntia Gonçalves, Kalunga ou João Fernando André e o Hélder Simbad, autores com sinais de um nível consistente de trabalho e bons indicadores de continuidade do grande legado, refere Kaio, mais palavra, menos palavra.
E nada mais havendo a tratar, lavrou-se o convite que aqui fica ao cuidado do caro leitor para que, podendo, não deixe de frequentar o Clube Literário Kalunga, que é já por mérito próprio um consulado angolano da poesia na última quarta-feira de cada mês por Lisboa, na Livraria Snob, ainda que em molde intimista e sem a grande cobertura mediática.
Gociante Patissa
Lisboa 12 Junho 2023
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