domingo, 25 de junho de 2023

CARTINHA AO PRIMO NICODEMOS | crónica semanal no Jornal de Angola em "Carta de Lisboa" N.º 04



Há bwé de cantares do galo que o nosso contacto não passava da austeridade das SMS. Olá, primo, como vai a saúde? Saudades. Até breve. Coisas assim que nem dão margem para contar com aquela riqueza de detalhes. A pessoa responde tudo bem, primo, obrigado. Saudades vossas também. Mesmo quando, na verdade, andamos acamados. Enfim, sai demasiado fria a conversa por mensagem de telemóvel, para o meu gosto de africano e bantu. Lá de onde a gente vem as horas só passam a contar depois que a conversa se esgota. 

Uma boa carta à moda antiga, longa e expedida pelos CTT com selo lambido e tudo, é que era porreira! Para início de conversa, a forma como esse primo meu veio ao mundo é por si só épica. Não me refiro ao parto, passando pela fecundação como a maioria de nós, comuns mortais. Quem é então o tipo? Pergunta você. Faço questão de o apresentar! Nascido nosso, ainda em pequeno primo da comunidade inteira se fez. Este é o Nicodemos Quintas. Fiquemos pelo Nicodemos, que até rima (rima pobre, sim, mas já dá. Melhor que a folha em branco).

Há 40 anos, uma muito jovem cristã desenvolvia avassaladora paixão por um homem mais velho, maior de trinta, por aí, e viúvo chamado Jonatão. Esbanjava talento como vocalista do coral da igreja. E por essa paixão pelo cantor, Rebeca desafiou todas as reprovações da aldeia. Casar era o céu. E teriam sido felizes, fosse a vida uma novela. Mas isso são outras conversas. 

O que importa é a graça do derivado de carne e osso, o primo Nicodemos, mecânico, o único com carapinha de khoisan na tribo Patissa, a ponto de bem pentear a caminho da escola, mas lá posto levar puxão de orelhas do professor, sob o crime de desleixo capilar. Vamos só à carta:

Querido primo Nicodemos,

Espero que esta missiva vos encontre de boa saúde. No corpo, na mente e na conta bancária. Aqui na tuga, vamos levando. Cada dia que nasce é mestre.

Primo, já reparaste que a saúde nunca antes foi tema de conversa entre nós? Estamos a chegar à fase dos embaraços na vida de um homem. É que transpostos os quarenta, bem-aventurado é quem engata uma psicóloga. Ou coach, no mínimo. Aí podes tirar negativas à vontade nos deveres de cama. É ela própria quem arranja justificação: amor, isso é natural, é da ansiedade! E o indivíduo sai de peito erguido da cena. Macho abaixo da linha d’água, ainda, só que ilibado.

Continuando. Na última SMS pedias para te mostrar Lisboa. Como é que eu direi, primo? Por acaso te lembras da lenda dos cegos que vão conhecer o elefante? É o caminho, se me permites. Afinal, como diz o provérbio Umbundu, nossa ricalíngua-herança, "dar de caras com o elefante não é questão de idade, mas de andar”. Se bem que avistar um elefante, aqui, não exige mérito algum! Basta espreitar o zoológico da estação de Sete Rios, bem no centro da cidade.

Ponto um: Lisboa é longevidade. A sério! Cidade grisalha, mais avós que netos. Só de imaginar que a nossa esperança de vida morre antes dos 60, aleija. Já agora, caía-me o queixo, numa repartição onde a funcionária mandava recuar, curta e seca: "aqui a idade não é prioridade. Só a invalidez!” Era ver na fila velhotas a disputarem comigo a ordem de chegada. Haja feitiço!

Olha queo meio, nisso, é frontal. Ia já contar, primo, o azar no check-indaprimeira hospedaria que me acolheu! A senhorita da recepcção ofereceu-se a ajudar com as malas. E eu não sabia se nesses casos é para aceitar ou não. Era para escalar o segundo andar, degrau a degrau. E escolheu logo a maior e a mais pesada das malas. Nota-se assim tanto que o teu primo é frágil?

Mas tens que ver o estado de negação no Metro e no autocarro, primo. A cara feia que o idoso te faz quando te metes a cavalheiro. Com as senhoras então... nem tentes ceder o teu lugar! E assim é o filme: jovens vão sentados, idosos em pé para provarem que aguentam. A idade faz entidade é lá, bem longe. Por cá velhos são trapos, segundo ouvi.

Ponto dois: Lisboa é o ladrão saciado. Aqui tu andas à vontade, falas ao telefone a qualquer hora. Achas que alguém ia gamar o teu aparelho, tipo os nossos amigos do alheio, que desatam a correr?! O Alibabá dos outros teve berço…

Ponto três: o país é meca do beijo ao fogo que arde sem se ver. E não é poesia. É tabaco! Tinhas de ver o amor correspondido entre o people e a nicotina, primo. A juventude, com a mesma paixão que estuda, fuma como se não houvesse amanhã. Até erradicaram o mosquito e tudo!

Ponto quatro: aqui é o cúmulo do agendamento. Primo, vou-te contar! Em tempos não torci um pé? Corri a lista telefónica de toda a net, a ver se marcava consulta urgente. Nada. Vagas só de quinze dias em diante. Mas a teimosia acendeu a luz no fundo do túnel em dois dias. Lá a médica receitou anti-inflamatórios e pediu exames. O pior me aguardava. Vagas na radiologia só depois de sete dias. Que remédio! Mais onze dias à espera do resultado, cheio de dores tortas. As mulheres que me perdoem. Eu disse mesmo: ó minha senhora, a continuar o excesso de burocracia, qualquer dia a pessoa já nem se lembra de torcer o outro pé! Francamente!

É o que digo, primo. Pode não parecer, mas tudo por cá é agendado. Mesmo se um gajo vê um casal aos beijos na rua, podes crer que houve marcação. Espontâneo é que não creio.

Ah, e tem mais! Já te contei a chatice no laboratório, primo? Acho que não. Conto agora. Olá! Saudei eu. Venho fazer o exame de DNA de ancestralidade. E a criança? Pergunta-me o recepcionista. Como assim?! Então ainda há pouco falamos ao telefone, o exame saía a duzentos Euros. Agora já custa uma criança?! Que inflação vem a ser esta?!Nisto, aparece o supervisor para desfazero mal entendido. O primeiro. Tenho lá cara de magnata aflito para se ver livre de assumir um rebento ocasional? 

O segundo mal-entendido era o próprio formulário, que pedia raça e outros detalhes. Então se é para DNA de ancestralidade, eu mais é que forneço respostas para obter as respostas que procuro?! Soubesse disso, tinha resolvido o assunto localmente no Dombe Grande, terra do feitiço e dos adivinhos, lá em Benguela.

Ponto cinco: Lisboa é a nova Babel. Mês passado, fiquei chocado, nisso decozinhar por aplicativo. O entregador paquistanês toca a campainha, recebo a encomenda e agradeço. "You like me”, atira ele. Engano seu, meu caro!"You like me”, insiste. Desculpa, mas entre nós está a lavrar um equívoco! Primeiro, eu não sou de ‘likar’ homem. E nem nos conhecemos para me confundires!"Please, you like me. I need more jobs”.Implora o paquistanês, a indicar o aplicativo. Ah, quer que eu dê like? E só fala agora?! Enfim, primo Nicó. Lisboa é bwé; só conhecendo e desfrutando!

Gociante Patissa | Lisboa, 15 Junho 2023

Share:

0 Deixe o seu comentário:

A Voz do Olho Podcast

[áudio]: Académicos Gociante Patissa e Lubuatu discutem Literatura Oral na Rádio Cultura Angola 2022

TV-ANGODEBATES (novidades 2022)

Puxa Palavra com João Carrascoza e Gociante Patissa (escritores) Brasil e Angola

MAAN - Textualidades com o escritor angolano Gociante Patissa

Gociante Patissa improvisando "Tchiungue", de Joaquim Viola, clássico da língua umbundu

Escritor angolano GOCIANTE PATISSA entrevistado em língua UMBUNDU na TV estatal 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre AUTARQUIAS em língua Umbundu, TPA 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre O VALOR DO PROVÉRBIO em língua Umbundu, TPA 2019

Lançamento Luanda O HOMEM QUE PLANTAVA AVES, livro contos Gociante Patissa, Embaixada Portugal2019

Voz da América: Angola do oportunismo’’ e riqueza do campo retratadas em livro de contos

Lançamento em Benguela livro O HOMEM QUE PLANTAVA AVES de Gociante Patissa TPA 2018

Vídeo | escritor Gociante Patissa na 2ª FLIPELÓ 2018, Brasil. Entrevista pelo poeta Salgado Maranhão

Vídeo | Sexto Sentido TV Zimbo com o escritor Gociante Patissa, 2015

Vídeo | Gociante Patissa fala Umbundu no final da entrevista à TV Zimbo programa Fair Play 2014

Vídeo | Entrevista no programa Hora Quente, TPA2, com o escritor Gociante Patissa

Vídeo | Lançamento do livro A ÚLTIMA OUVINTE,2010

Vídeo | Gociante Patissa entrevistado pela TPA sobre Consulado do Vazio, 2009

Publicações arquivadas