Há bwé de cantares do galo que o nosso contacto não passava da austeridade das SMS. Olá, primo, como vai a saúde? Saudades. Até breve. Coisas assim que nem dão margem para contar com aquela riqueza de detalhes. A pessoa responde tudo bem, primo, obrigado. Saudades vossas também. Mesmo quando, na verdade, andamos acamados. Enfim, sai demasiado fria a conversa por mensagem de telemóvel, para o meu gosto de africano e bantu. Lá de onde a gente vem as horas só passam a contar depois que a conversa se esgota.
Uma boa carta à moda antiga, longa e expedida pelos CTT com selo lambido e tudo, é que era porreira! Para início de conversa, a forma como esse primo meu veio ao mundo é por si só épica. Não me refiro ao parto, passando pela fecundação como a maioria de nós, comuns mortais. Quem é então o tipo? Pergunta você. Faço questão de o apresentar! Nascido nosso, ainda em pequeno primo da comunidade inteira se fez. Este é o Nicodemos Quintas. Fiquemos pelo Nicodemos, que até rima (rima pobre, sim, mas já dá. Melhor que a folha em branco).
Há 40 anos, uma muito jovem cristã desenvolvia avassaladora paixão por um homem mais velho, maior de trinta, por aí, e viúvo chamado Jonatão. Esbanjava talento como vocalista do coral da igreja. E por essa paixão pelo cantor, Rebeca desafiou todas as reprovações da aldeia. Casar era o céu. E teriam sido felizes, fosse a vida uma novela. Mas isso são outras conversas.
O que importa é a graça do derivado de carne e osso, o primo Nicodemos, mecânico, o único com carapinha de khoisan na tribo Patissa, a ponto de bem pentear a caminho da escola, mas lá posto levar puxão de orelhas do professor, sob o crime de desleixo capilar. Vamos só à carta:
Espero que esta missiva vos encontre de boa saúde. No corpo, na mente e na conta bancária. Aqui na tuga, vamos levando. Cada dia que nasce é mestre.
Primo, já reparaste que a saúde nunca antes foi tema de conversa entre nós? Estamos a chegar à fase dos embaraços na vida de um homem. É que transpostos os quarenta, bem-aventurado é quem engata uma psicóloga. Ou coach, no mínimo. Aí podes tirar negativas à vontade nos deveres de cama. É ela própria quem arranja justificação: amor, isso é natural, é da ansiedade! E o indivíduo sai de peito erguido da cena. Macho abaixo da linha d’água, ainda, só que ilibado.
Continuando. Na última SMS pedias para te mostrar Lisboa. Como é que eu direi, primo? Por acaso te lembras da lenda dos cegos que vão conhecer o elefante? É o caminho, se me permites. Afinal, como diz o provérbio Umbundu, nossa ricalíngua-herança, "dar de caras com o elefante não é questão de idade, mas de andar”. Se bem que avistar um elefante, aqui, não exige mérito algum! Basta espreitar o zoológico da estação de Sete Rios, bem no centro da cidade.
Ponto um: Lisboa é longevidade. A sério! Cidade grisalha, mais avós que netos. Só de imaginar que a nossa esperança de vida morre antes dos 60, aleija. Já agora, caía-me o queixo, numa repartição onde a funcionária mandava recuar, curta e seca: "aqui a idade não é prioridade. Só a invalidez!” Era ver na fila velhotas a disputarem comigo a ordem de chegada. Haja feitiço!
Olha queo meio, nisso, é frontal. Ia já contar, primo, o azar no check-indaprimeira hospedaria que me acolheu! A senhorita da recepcção ofereceu-se a ajudar com as malas. E eu não sabia se nesses casos é para aceitar ou não. Era para escalar o segundo andar, degrau a degrau. E escolheu logo a maior e a mais pesada das malas. Nota-se assim tanto que o teu primo é frágil?
Mas tens que ver o estado de negação no Metro e no autocarro, primo. A cara feia que o idoso te faz quando te metes a cavalheiro. Com as senhoras então... nem tentes ceder o teu lugar! E assim é o filme: jovens vão sentados, idosos em pé para provarem que aguentam. A idade faz entidade é lá, bem longe. Por cá velhos são trapos, segundo ouvi.
Ponto dois: Lisboa é o ladrão saciado. Aqui tu andas à vontade, falas ao telefone a qualquer hora. Achas que alguém ia gamar o teu aparelho, tipo os nossos amigos do alheio, que desatam a correr?! O Alibabá dos outros teve berço…
Ponto três: o país é meca do beijo ao fogo que arde sem se ver. E não é poesia. É tabaco! Tinhas de ver o amor correspondido entre o people e a nicotina, primo. A juventude, com a mesma paixão que estuda, fuma como se não houvesse amanhã. Até erradicaram o mosquito e tudo!
Ponto quatro: aqui é o cúmulo do agendamento. Primo, vou-te contar! Em tempos não torci um pé? Corri a lista telefónica de toda a net, a ver se marcava consulta urgente. Nada. Vagas só de quinze dias em diante. Mas a teimosia acendeu a luz no fundo do túnel em dois dias. Lá a médica receitou anti-inflamatórios e pediu exames. O pior me aguardava. Vagas na radiologia só depois de sete dias. Que remédio! Mais onze dias à espera do resultado, cheio de dores tortas. As mulheres que me perdoem. Eu disse mesmo: ó minha senhora, a continuar o excesso de burocracia, qualquer dia a pessoa já nem se lembra de torcer o outro pé! Francamente!
É o que digo, primo. Pode não parecer, mas tudo por cá é agendado. Mesmo se um gajo vê um casal aos beijos na rua, podes crer que houve marcação. Espontâneo é que não creio.
Ah, e tem mais! Já te contei a chatice no laboratório, primo? Acho que não. Conto agora. Olá! Saudei eu. Venho fazer o exame de DNA de ancestralidade. E a criança? Pergunta-me o recepcionista. Como assim?! Então ainda há pouco falamos ao telefone, o exame saía a duzentos Euros. Agora já custa uma criança?! Que inflação vem a ser esta?!Nisto, aparece o supervisor para desfazero mal entendido. O primeiro. Tenho lá cara de magnata aflito para se ver livre de assumir um rebento ocasional?
O segundo mal-entendido era o próprio formulário, que pedia raça e outros detalhes. Então se é para DNA de ancestralidade, eu mais é que forneço respostas para obter as respostas que procuro?! Soubesse disso, tinha resolvido o assunto localmente no Dombe Grande, terra do feitiço e dos adivinhos, lá em Benguela.
Ponto cinco: Lisboa é a nova Babel. Mês passado, fiquei chocado, nisso decozinhar por aplicativo. O entregador paquistanês toca a campainha, recebo a encomenda e agradeço. "You like me”, atira ele. Engano seu, meu caro!"You like me”, insiste. Desculpa, mas entre nós está a lavrar um equívoco! Primeiro, eu não sou de ‘likar’ homem. E nem nos conhecemos para me confundires!"Please, you like me. I need more jobs”.Implora o paquistanês, a indicar o aplicativo. Ah, quer que eu dê like? E só fala agora?! Enfim, primo Nicó. Lisboa é bwé; só conhecendo e desfrutando!
Gociante Patissa | Lisboa, 15 Junho 2023
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