Debaixo do prédio há coisa de quinze minutos quando estacionava, vindo da boemia luandense que se seguiu à colectânea Trilha dos Inadaptados, a vida fez questão de imitar a literatura. O flagrante foi curto mas impagável. Já conto, não vá eu ser injusto na ordem de chegadas, posto que este episódio está longe de ser a estreia, ainda que parafraseando George Michael, estrela pop inglesa de feliz memória, seja caso para dizer que a cena há pouco testemunhada de esguelha “is not the first and won’t be the last, it’s just the biggest”. Tenho a sorte que acompanha os escritores solitários, como a bola para os pontas de lança à boca da baliza. A vantagem é que não temos de recear a incredulidade de leitor/ouvinte do episódio da vez, pois entre a verdade e a mentira, salva-nos a conotação criativa do ofício. Do outro lado do cruzamento, no conglomerado de diplomatas free lance, vi marchar uma individualidade em atavio apropriado à ocasião. Junto à farmácia, no pilar da vitrine de fatos e calçado de preço presidencial, não evitei rever-me na ansiedade do homem de mãos nos bolsos, perfume no ponto, encostado à parede para disfarçar o nervosismo. O mano aguardava naquela condição que não se deseja a nenhum adido de coisas do coração, falo dos instantes que antecedem a chegada de quem mandamos chamar, coração palpitante, mas que as palavras ensaiadas, oh desespero, encravam quando ela diz “fala já, me chamaste porquê?”. Transportou-me por instantes para as memórias de menino e moço “na província”, naquele limbo de gosto e tortura chamado “dicar ou xaxar”. Mas os tempos são outros, o sim na era do SIM chega em linha recta, pelo que tranquei o carro devagar apreciando o filme com aquela invejinha do trono libidinoso do outro. Tudo o mais devagar possível, ouvidos antenados q.b. A mulher chega coladinha a milímetros ao tronco do outro, calções jeans amputados na borda das nádegas, entranhas arrogantes, bolsa reluzente, blusa de alças, penteado executivo. Mas destoa no tom de noticiário, não há sussurros. “Vou-te avisar uma coisa, eu não gosto disso ouviste?”, atira para o embaraço do moço. “Eu quando os meus chefes me ligam é para ir f..., ouviste, né?!” Ele vai a ponto de implorar que fale baixo. “Já me ligaste às seis da manhã, às 14h, à tarde, e ficas só a estragar o meu silêncio. Meu número é para os meus chefes; liga e saio para f... Vamos se respeitar, não admito falta de respeito no meu local de trabalho, ya?” E lá o encontro termina inconclusivo, com o rapaz a sair de cena pelas sombras e penumbras dos postes que mantêm acordadas as diplomatas das relações interiores, passos disparados como cliente derrotado na falta de cobertura pelo preço do bem luxuoso na montra. Voltara? (A série continua) Gociante Patissa, 30 Outubro 2021 | www.angodebates.blogspot.com
domingo, 31 de outubro de 2021
sexta-feira, 29 de outubro de 2021
quarta-feira, 27 de outubro de 2021
Réquiem | HORÁCIO NGANDU E O FIM DA GINGUBA
Um mês qualquer de 2006. Eram 12h e mais coisa, menos coisa, sol abrasador no lombo de um carteiro de circunstância, entre o Alda Lara e a paragem da Cruz Vermelha, serpenteando ali pelas ruelas da Sé Catedral. Mas a fome inventa. A fome sabota passos largos. Vão duas doses de ginguba torrada, garrafa de água é receita fixa na mochila. Há que apressar o passo para ocupar o lugar no Hiace do Lobito, Santa Cruz paragem e escritório, cansado mas satisfeito por ter distribuído todas as cartas-convites. Encho a boca de ginguba e justo neste instante, uma voz ao longe exclama às sílabas de carinho: Go-ci-ante-pa-ti-ssa. A saudação exigia no mínimo uma retribuição calorosa, verbal. Mas com que boca? Embaraçado como só poucos, lá me desvencilhei e rimo-nos à farta da partida que involuntariamente pregara ante a minha trapalhada de locutor que afinal se embutia de ginguba nas horas de aperto.
Era o Horácio Ngandu, operador de som da Rádio Morena Comercial, um gajo do naipe competente e aprazível com quem havíamos desenvolvido cumplicidade, só rivalizava no empenho e criatividade com um Dinho Carlos ou um Manuel Chandicua, em Benguela.
As pessoas, passageiras por vocação como bem são, passam. Mas há as que têm a proeza de nos ficarem gravadas na memória por presenciarem aqueles momentos ímpares, talvez segundos, exactamente naquele instante improvável envolto em flagrante trapalhada. Será para sempre essa a lembrança mais imediata que fica do Horácio Ngandu. Hoje tomei conhecimento de que vai a enterrar no Cemitério do Camama às 10h de hoje, ainda ninguém me revelou as causas. Ngandu trocaria Benguela pela capital onde se estabilizou como operativo da Polícia e na sua paixão pelos bastidores das ondas hertzianas, colocado na Rádio MFM. Falamos em tempos sobre os planos que alimentava de escrever um livro.
Dar corpo à ONG AJS (Associação Juvenil para a Solidariedade) custou-nos chuva, sol, assaduras e demais desgastes de uma caminhada a começar do zero literalmente, tendo a penas o capital de gerar ideias, neste aprender-fazendo com o ímpeto de mudar o mundo. Como de resto terminam todas as juventudes, mudamos nós, o mundo nem por isso, lá permanece pronto para enfrentar novas utopias. Quanto a nós, éramos no núcleo duro jovens com ensino médio, sonhadores, origem desenrascada, irreverentes mas protegidos pela reputação de gestão rigorosa de património e parcerias.
Por meio dos projectos, muito mais dos produtos de comunicação para cidadania, concretamente os programas de rádio Palmas da Paz e Viver para Vencer (2003-2012) e o do Boletim A Voz do Olho, jornal comunitário, há um somatório de memórias, entre colaboradores, voluntários, convidados, quadro efectivo da rádio, bem como a sua gestão e área comercial, sem esquecer os operadores de som, aqueles que garantiam a emissão. O programa era em directo, intervalando debate com arte dramática, dinâmico como é o pulsar da juventude pensando e debatendo Angola: reconciliação, saúde pública, educação e desenvolvimento comunitário. A mesma equipa polivalente de não mais de cinco imberbes desdobrava-se entre a concepção, condução e fazer de estafeta para assegurar convidados.
Repousa em paz, amigo Horácio! Aqui fica a gratidão pelo contributo prestado a nós e à AJS.
Gociante Patissa | Luanda 27 Outubro 2021 | www.angodebates.blogspot.com (Imagem: Facebook pessoal de Horácio Ngandu)
domingo, 24 de outubro de 2021
Diário | Não gostei nem um pouco, sabes, né?
sexta-feira, 22 de outubro de 2021
Lá consegui finalmente repor no meu acervo a obra O LADO OVIMBUNDU DE AGOSTINHO NETO, da autoria do historiador lobitanga Bernardino Luacute (de feliz memória). Tive um autografado que ofertei há dois anos. A reposição do acervo que hoje concretizei após vários meses de procura em seco só foi possível graças à generosidade do meu ilustre confrade Domingos Florentino (se preferirem Marcolino Moco). Para quem estiver a pensar em pedir emprestado, antecipo já o patrocínio do meu não😁😁😁
quinta-feira, 21 de outubro de 2021
O meu trauma com ladrões infiltrados no BPC e INSS
segunda-feira, 18 de outubro de 2021
O que muda na Rádio Nacional de Angola após o Top dos Mais Queridos?
Que lição irá a RNA tirar da sua própria inovação no Top dos Mais Queridos 2021, num ano em que a final contou com um representante de cada província? Pela lógica da base de apoio popular, ganhou o Huambo com um grupo desconhecido de todo, com uma proposta manifestamente arrojada nos acabamentos, o que indica as condições desenrascadas em que músicos não levados ao colo pelas "labels" trabalham. Crise no Lar, tema dos Picantes, arrebatou os 2 milhões de Kwanzas de troféu principal, batendo na concorrência a "hegemonia" Paulo Flores e Yuri da Cunha, cujo tema, Njila yadikanga, está a um patamar de longe superior esteticamente e no que respeita aos arranjos. Em terceiro lugar ficou Tiviné, representando a província de Benguela (trata-se na verdade de um músico da vizinha província do Kwanza Sul que há mais de duas décadas "aportou" Benguela, onde se revelaria pelo carisma e talento enquanto integrante do Quinteto Ndjando, também na vertente da recolha e adaptação do cancioneiro). Quem conhece minimamente a dinâmica cultural e o sentimento de pertença e identidade não estranhará esse feito que bafejou o planalto central. O povo votou em massa porque conhece e se identifica, conhece porque se divulga localmente, ou seja, a província adoptou como causa de todos a participação do grupo local no concurso nacional. É que no Huambo, o que julgo estender-se ao Bié, valorizam-se e se promovem as manifestações de produção local. É o contrário por exemplo daquilo que se vê na província de Benguela, onde no campo musical o produto local é tratado como marginal, relegado para programas "temáticos", dedicando a maior parte da emissão ao mainstream, com a luandização costumeira por meio do semba (e da língua kimbundu cuja mensagem praticamente ninguém percebe, só contam o ritmo/harmonia) e do kuduro, com tudo de bom e de trágico que a subcultura carrega de boçal, salvaguardadas as virtudes cada vez mais escassas na dança/música electrónica. A mim faz mesmo muita confusão estar em Benguela, uma localidade com dez municípios e um sem fim de variantes etnolinguísticas e quando se sintoniza a rádio, é como se a pessoa estivesse em Luanda. E não é que os músicos locais não se esforcem em investir os parcos recursos para criarem. Pôr a tocar na rádio da localidade em que vivem é que é o problema. Chegam a dizer, já entristecidos, que por vezes a música tem de ganhar notoriedade fora para que localmente seja acolhida. E não é um fenómeno que só afecte as rádios do estado, as privadas também. Quando se promovem actividades, lá a música local toca, mas logo a seguir... Convém que não sejamos mal interpretados como se estivéssemos a combater o carácter cosmopolita, não é isso. É que o semba, que convém vender como bandeira nacional, pode afinal não dizer nada a muitos povos que formam a malha da diversidade cultural do país que somos, independente de ser uma riqueza muito cara ao norte ou representar o substrato da elite pós-independência e ter jogado um papel relevante na luta anti-colonial. Enfim, a pergunta de retórica é: de que adianta essa experiência da representatividade das 18 províncias e a inerente diversidade cultural na esteira do Top dos Mais Queridos, se ao longo do ano a discografia é deixada à mercê dos gostos dos DJ's e operadores de som, muitos deles, infelizmente, com pouca consistência em matéria de cultura musical?
domingo, 10 de outubro de 2021
Crónica | Meu lugar é um desterro
Atravessa-me recorrentemente desde jovem a contradição existencial de quem ama esse País chamado Angola e continuará a honrá-lo, quer pela própria cabeça, quer pelo legado de sacrifício consentido pela família desde as décadas do nacionalismo... mas que em sentido oposto, se revê cada vez menos no rumo que a sociedade toma no campo da alteridade e ante a inversão gritante de valores elementares de convivência.
quinta-feira, 7 de outubro de 2021
Desabafo de Ismael Mateus sobre ser "opinion maker" em Angola
A opinião pública também tem de ter critérios, regras e uma delas tem de ser a de explicar os fenómenos, fazer entender os factos em vez da manipulação, da opinião pessoal, do "eu acho" ou "penso que". Bom dia