(I)
“Mas, ó marido! Eu já ando muito farta
deste teu amor aos pedacinhos!…”
“Isso são modos de se exprimir, ó bebé?!”
“Você me desculpe, mas ninguém entra num
casamento para merecer isto!…”
“Mas a que propósito vem este desabafo?”
“Me fala só: ainda te lembras da última
vez que te deixaste achar na cama à hora do galo cantar?!”
“Até me sinto mal. Por que é que não
falaste mais cedo? Será que te faço faltar amor?”
“Hum…”
“Meu bem, ainda há pouco fizemos amor…”
“Mas a que custo, homem?! Tivemos de
mandar as crianças irem brincar na rua, com o risco de atropelamento…”
“Mas foi bom, não foi?... Diz que sim,
querida, eu adoro ver-te no pico dos teus prazeres…”
“É sempre assim. É que eu não percebo,
sinceramente, esta vida de amor aos pedaços. Caramba! Para que serve a noite
então, ainda te lembras?!”
“Querida, são ossos do ofício. Não é fácil
ser jornalista neste país onde as fontes se fecham mais rápido do que o
instintivo pestanejar. Então é pela noite, já desligado dos medos do
escritório, que se conseguem furos. No bar, na discoteca, na praia, enfim…”
“E na putaria também, não é isso, meu amor?…”
“Por tudo o que é mais sagrado!, eu sou
fiel. Fiel a ti e fiel à profissão. Apenas jornalista… E jornalista é vinte e
quatro horas por dia, querida. Peço compreensão, por favor…”
(II)
“Aló, mulher, preciso de ti, estou a
morrer!!! Áááiii! Fala só com o teu pai, faz favor…”
“Aló, marido. Não se ouve bem. O que é que se
passa? O mundo acaba hoje ou quê?!”
“Fui assaltado no escuro – ááiii, dói
muito! – Levei uma faca do peito! Preciso de dinheiro urgente para ser atendido
aqui na clínica… – ááiii”
“Mas a esta hora vou acordar o meu pai?! E
se ele estiver a marejar no milagroso casulo de quem ao seu lado dia-a-dia
acorda?”
“Faz favor só… – ááiii, dói
horrivelmente!”
“Liga para a ENSA, querido…”
“Não tenho seguro de saúde, filha. Senão
já o saberias…– ááiii - Eu não te escondo nada...”
“Mas não ligas para o teu patrão no jornal
então porquê?!”
“Não é possível, eu ganho por cada
reportagem. O esfaqueamento foi antes de colher a matéria, e como não há nada a
publicar, portanto – ááiii – não tenho direito à avença…”
“Ai, afinal só em casa é que és jornalista
vinte e quatro horas por dia?!”
Gociante Patissa. Aeroporto Internacional da Catumbela, 23 Jan 2017
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Fiel à profissão... É preciso ser-se fiel à "profissão".
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