À chegada do interior, tive a felicidade de morar no morro da Quileva. Tem-se vista avantajada do coração da cidade. Cintura verde, a sul, as salinas, no centro, e o mar, a norte. Se desci o morro, foi somente atrás da máquina burocrática para questões escolares. Para lá dos jardins, uma vez na baixa, a cidade sumia, daí o desejo de logo regressar à prateleira. Por exemplo, disputávamos a titularidade de carros que víamos circularem no limite da linha do horizonte.
Em cidades singulares, as portas todas costumam dar em uma só com alma, o porto. Às marés ou aos caudais, faz-se entrada e saída, ao mesmo tempo, o cais. E é este desfile aparentemente desconexo dos navios que adensa na história do meu Lobito o fio.
Com a greve dos professores, foram três meses de tédio, agora no bairro da Santa-Cruz, zona com vista limitada, sem o televisor em casa, que por sua vez somava meses no conserto. Tudo levava a crer que o eletrotécnico não despacharia o trabalho sem a paga, posição quanto a nós injusta, porquanto o dinheiro que lhe faltava a ele faltava-nos a nós também. Estamos em 1995, e a presença, às centenas, de capacetes azuis da ONU e demais agências humanitárias ilustrava bem o quadro de penúria que o país vivia.
Não me ocorrendo a posição do pai, decidimos entre irmãos tirar proveito da ONU. Coube-me a missão de juntar a coragem ao meu arrojado inglês e comercializar, do tipo zunga, as estátuas de madeira lá de casa. Arrecadaríamos 55 USD, o equivalente a dois salários de professor. Em vão. O televisor já tinha sido extraviado.
O contacto com os capacetes azuis era fruto proibido em certos quarteis. Recordo-me de quando o Eliseu viu seu negócio retido no Hotel Términus. Mais conversa, menos conversa, prometeu-se subornar o guarda angolano, penhorando o Bilhete de Identidade. Parvo do guarda, já que ficava sempre mais fácil tratar outra via do documento.
Lá conheci o Zé, mais novo e mais alto do que eu. Até em sua casa, no 28 (Zona Comercial), cheguei a beber água. Impressionava ver-me falar “fluentemente” com os estrangeiros, ganhando uma vez ou outra desde livros, cassetes, a produtos de higiene. Foi o Zé quem decidiu levar-me ao Porto do Lobito, onde esteve naquele dia navio britânico da ONU. Atleta de basquetebol na escola da Casa do Pessoal, o Zé passava pelo portão sete como água pela garganta. Como entraria eu?
O Zé instruiu-me a dizer ao polícia que iria ter com o guindasteiro Frederico Carlos, meu pai. O polícia fitou-me, e autorizou. Ainda melhor, disse para voltar a ter com ele, caso alguém me molestasse. Tinha resultado! Antes de degustarmos as iguarias do navio, observei ao longe o guindasteiro. De facto, tínhamos algumas semelhanças, no tom de pele ligeiramente clara e no semblante aparentemente “mentalista”, enfim.
Hoje, o Zé é um homem feito, fazendo carreira como professor de educação física em colégios. Um dia desses lhe lembro daquela emocionante aventura, todavia reprovável.
Gociante Patissa, Benguela 11 Dezembro 2012
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