Uma das mãos que se posiciona como um dos herdeiros do virtuosismo da literatura angolana não vê "o escritor como um estágio ou como um lugar onde se chega", mas como um intermediário, um "tradutor do pensar, do imaginário". Gociante vive com o medo natural de ser lido só por escritores.
A oralidade é uma tradição africana muito rica. Como muitos, teve a bênção de nascer num berço griot [contador de histórias]. Qual é o significado para si?
No meio rural, naquele contexto, era muito mais propenso à palavra falada. Porque não havia "a contaminação" dos órgãos de comunicação social e da globalização. Os valores eram muito mais fortes. Sendo um meio pequeno e num contexto de guerra, a tendência de as pessoas ficarem circunscritas ao meio era mais forte. Por isso, sempre falei o português e o umbundu. Aquilo a que se chama idiossincrasia (o conjunto de valores, de simbologia, de crenças) tudo era quase uniforme da região Ovimbundu, que fica na fronteira entre o Huambo e o Bocoio.
Tal como em muitas regiões a oralidade imperava?
A nossa realidade do mundo era aquela [oralidade]. Um bocado de escola, mas a grande característica sociocultural ou socioeconómica era no meio rural. Depois tem a questão do provérbio, do conto, a forma de socialização, que eram instrumentos da educação diária. Havia também o serão, que era para contar histórias. E aí a tradição oral ia passando de geração em geração.
Tradicionalmente as noites eram para contos... eram os "mimos" daquela altura para as crianças?
Sim, era esse ambiente. E não havia diferente. Em todos os lares, depois do jantar, as pessoas sentavam-se à volta, dependendo da época do ano. Mas o hábito de contar histórias era como - não diria uma regra, porque tinha de haver um mecanismo de fiscalização —, mas era uma extensão natural do nosso modo de vida. Tanto é que na oralidade, a parábola e o provérbio surgem como mecanismos de regulação. Então havia sempre uma crença, segundo a qual, se contássemos histórias durante o dia, íamos ganhar chifres. Mas hoje, olhando para trás, se calhar era para dizer que de dia tínhamos de ir trabalhar, e à noite era o momento para a socialização e a transmissão da tradição oral.
"As tradições orais não devem ser julgadas pelo critério de verdade ou mentira, mas pela lição que transmitem"
E quando é que transita da oralidade para a palavra escrita?
A transição não consigo estabelecer, porque a própria escrita também é oralidade — embora muitas vezes seja uma oralidade concebida até no contexto espiritual, como você disse, em umbundu — para depois transpô-la num outro código linguístico, no caso, o português. Mas, em 1985, com o agudizar da guerra civil, os meus pais entenderam que tínhamos de sair do interior para o litoral. Na altura, tinha cinco, seis anos. Mas a oralidade nunca morreu. Costuma-se dizer que ninguém é do Lobito, assim como de Luanda: todo mundo veio de algum lado quer pela máquina industrial, quer à procura de melhores condições de vida. Ou seja, aonde quer que fôssemos morar no Lobito, havia sempre as bases etnolinguísticas salvaguardadas. Isso manteve-se até 1995, 1996. O hábito de contar histórias prevaleceu.
Como nasce a escrita?
A escrita, penso que foi a partir da 4.ª classe, com a obrigação de escrever redacções e fazer ortografia. Mas o livro, como tal, publiquei em Maio de 2008, reunindo os textos que considerava mais representativos, escritos desde 2001: "O Consulado do Vazio". Nesta obra, aglutinei esses textos, muitos dos quais escritos ainda durante a guerra, naquela aspiração de que isso tinha de acabar, de que precisávamos de um mundo melhor, com menos mortos e mais compreensão.
É um livro típico do sofrimento do poeta?
Sim, do poeta e do activista também, porque passei a fazer parte do mundo das ONGs. Então, "O Consulado do Vazio" era a voz do poeta, do activista e também do blogueiro — mais ou menos uma combinação distinta. Era uma voz para a paz.
Curioso que o primeiro livro é um apelo à paz, mas o seu primeiro contacto com o livro foi motivado também pela guerra civil?
Como todos nós, porque naquela altura, no contexto da Guerra Civil, o exército ou Ministério da Defesa era quem mais comprava livros para animar as tropas; o livro chegava à frente de combate. Então, nesse contexto, era indissociável a abundância do livro e a guerra. Não que a guerra fosse ou seja uma virtude, mas sabe que a guerra tem duas características: quando não é estúpida, tem a capacidade de aproximar as pessoas.
Naquele tempo, vivia-se o que se chamava criatividade orientada. Havia muita produção de textos voltados para a mobilização; a literatura prestava-se também a alimentar a propaganda. Então, por meio do meu pai, iam chegando livros a casa. A tomada de posição, no fundo, não estava apenas no escritor, mas também no leitor. Nós éramos de uma geração que aprendia a ler não de forma insípida, não a leitura pela leitura, mas como arte com posicionamento.
Mas literatura ideológica não impediu que o escritor se fizesse por ler?
Sim, o escritor faz-se por ler, mas também por observar e viver o mundo à sua volta.
"se não tivesse nascido no interior, se tivesse nascido só na cidade, acharia que a alienação identitária que vivemos hoje é normal."
É fácil perceber as marcas da sua infância nos seus textos. Que influência ela teve na forma como escreve?
Há muitas influências. Primeiro, no ritmo, na tendência narrativa, na de contador de histórias, mas também em alguns personagens. Não direi que há trauma, mas há características muito marcantes daquela altura. Quando éramos pequenos, bastava ouvir o disparo de uma arma para corrermos a abrigar-nos junto da mãe ou de uma tia. Eu tinha sempre uma tia, chamada Adelina Mbali, irmã do meu pai, que era o nosso refúgio. Essa senhora está presente em quase todos os meus livros. O personagem Mbali atravessa vários contos. Eu o coloco sempre lá inconscientemente. Acho que tem a ver também com a forma como criamos um personagem matriarcal, mas também bravo, de uma figura feminina. Até porque temos um problema na nossa história — muito concentrada no triunfalismo masculino. O feminino é destacado na região norte. Então, o facto de a personagem Mbali estar sempre presente nos contos pode traduzir essa ligação à infância. Talvez seja um lugar da infância, ao qual sempre regresso, como refúgio, segurança.
Houve algum momento na sua infância que o definiu como escritor?
Não. Não vejo o escritor como um estágio, como um lugar onde cheguei. Vejo como um processo. Não quero puxar isso para um lado mais messiânico e dizer que é um dom ou não. Vejo o trabalho de escritor como um compromisso. Às vezes, fazendo a intermediação entre o pensar e a expressão, porque a literatura é essencialmente expressão. É como no jornalismo. A pessoa não é jornalista apenas quando escreve aquela peça — é jornalista o tempo todo. O risco que você vive, vive-o o tempo todo, não só por ser autor daquela peça. Para mim, ser escritor é ser tradutor de pensamento, ideia, imaginário, revolta, crítica. É um estado permanente, uma forma de ser e estar. É um processo. Não há um momento concreto que possa dizer "isto contribuiu para ser escritor". Infelizmente, como precisamos de referências para sustentar certas categorizações, considera-se escritor quem publicou um livro. Mas e se eu não tivesse publicado um? Podemos dizer que a infância é a minha essência, no sentido de reivindicar a identidade. Penso que, se não tivesse nascido no interior, se tivesse nascido só na cidade, acharia que a alienação identitária que vivemos hoje é normal.
Outra característica dos seus livros é a forma de ser e de conservar o ancestral, o tradicional e a cultura. Não se deixa afectar pela globalização inevitável?
Não, é inevitável que ela nos toque, mas cada geração é forte enquanto consegue contornar os desafios do seu tempo e contexto. Nada garante que o contexto sociocultural que encontrei ao nascer no final dos anos 70 seja a essência. Não acredito em civilizações estanques, mas também não aceito a ideia de que o português seja o ponto de partida e chegada, já que uma língua veicula uma cultura.
Mas na globalização, a característica essencial é uma unidade de medida universal, que serve para todas as geografias...
O erro é usar a cidade como régua para tudo. Até porque a velocidade da vida urbana não permite referências sólidas. Quando falo em referências, refiro-me a coisas que sustentam narrativas. Por exemplo, acho problemáticos programas como o Mitos Urbanos, da TPA, que tentam desfazer mitos fundadores — estes são necessários para sustentar o imaginário. As tradições orais não devem ser julgadas pelo critério de verdade ou mentira, mas pela lição que transmitem. Por exemplo, quando estudamos inglês, aprendemos sobre um "monstro de Londres" — os ingleses não desfazem os seus mitos. Devemos compreender o que há por detrás deles e como nos ligam espiritualmente aos nossos ancestrais.
Há uma fábrica urbana que produz uma verdade universal?
Não defendo antagonismo entre cidade e campo, mas respeito mútuo entre contextos culturais. Não é porque alguém é de Luanda que representa todo o país. É preciso criar mecanismos para dar vida às realidades locais e projectá-las para fora. O problema é que queremos posicionar-nos no plano internacional anulando o local. Vejo muitas zungueiras falando umbundu em Luanda, mas sentindo que precisam de falar português para agradar o cliente. Precisamos de valorizar e preservar essas línguas. Podemos explorar esse mosaico cultural sem criar guetos ou regionalismo. O carnaval não basta; é preciso um plano contínuo. Podíamos ter formações, encontros, eventos para fortalecer essa identidade. Pode parecer utopia, mas é necessária. Eu sou da utopia e do sonho, pois a realidade é chata.
Os seus contos representam o campo e a cidade. Continua a assistir-se à quase "marginalização do mundo rural"?
No livro "A Última Ouvinte", escrevi contos que representam tanto a cidade como o campo. Há, no entanto, marginalização crescente do mundo rural, fruto de mentalidade europeizada. Mas também porque ainda não investimos nas zonas rurais e não criámos uma sistematização, acabamos por tomar como referência de civilização uma mentalidade europeizada. Ainda achamos que o locutor tem de falar como um branco, então aí existe um complexo que não conseguimos superar. O que eu entendo, conversando com muitas pessoas naturais de Luanda e ligadas à elite, é que o luandense da elite acha que não tem sotaque — porque, para ele, sotaque remete a algo negativo. E isso é uma contradição total, porque a língua falada carregará sempre o registo do meio, não importa onde. O próprio português não se fala da mesma maneira em todo o Portugal, porque cada meio acrescenta o barro à língua. Achar que, por ser de Luanda e da elite, não se tem sotaque é apenas reflexo de alienação total, associar sotaque a algo sujo ou inferior.
"O erro é usar a cidade como régua para tudo. A velocidade urbana não permite referências sólidas"

NASCIDO GRIOT
[Gociante Patissa nasceu em 1978, na comuna de Belo Monte, município do Bocoio, província de Benguela. Sob forte influência do pai e da mãe, tornou-se um exímio griot, afirmando-se como um dos maiores contadores de histórias da nova geração de escritores angolanos. Possui sete obras literárias publicadas, entre poesia e contos. É jornalista e apaixonado por rádio. As suas obras "A Última Ouvinte" (contos) e "O Apito que Não se Ouviu" (crónicas) foram, desde 2023, incorporadas no catálogo da Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil), na secção de Estudos Africanos.]
Voltando para a escrita e aproveitando a sua deixa: a escrita também serve para fugir da realidade chata?
Se entendermos a escrita como um processo mental, pode ser uma forma de testarmos os limites da sociedade. Portanto, não é só o real, mas também o imaginário (como seria, se...). Mas, às vezes, o imaginário pode ser uma forma de negar o presente, porque não concordamos com ele. Pois, toda a escrita é política, envolve tomada de posição, não há arte por arte. A arte combina dimensão social e cultural com estética.
Qual é o seu maior medo como escritor angolano?
O único medo que tenho é que, infelizmente, os escritores escrevam apenas para outros escritores.
Porquê?
Porque o livro custa caro e não há subvenção, as políticas que existiam de incentivo e subvenção foram descontinuadas. Então, o meu medo é escrevemos para sermos lidos fora do país, enquanto os nossos cidadãos não nos lêem. Este é o meu maior medo. Sempre critiquei a tiragem limitada. O meu medo é que a literatura se torne um exercício de elite, escritores escrevendo para escritores — e se desligue da sociedade, do cidadão comum.
Mas passa-se também a ideia que o angolano não lê?
Claro que generalizar é sempre injusto, mas para entender os angolanos e a matriz do povo, temos de olhar para a sua forma ancestral de expressão: somos um povo de oralidade. O meio de comunicação mais forte ainda é a rádio, porque a rádio é a palavra. Mesmo nas redes sociais, o audiovisual vai ganhando espaço, pois reflecte quem somos. O texto escrito exige domínio das ferramentas de descodificação, que se aprende na escola e na família e também se aprende no contacto permanente com o livro — se ele for abundante. Mas, se tiver de escolher entre comprar um livro ou pão, vou escolher o pão. Este é o contexto socioeconómico. Durante anos, subsidiamos o combustível. Talvez agora seja necessário subsidiar o livro, tal como se fez/faz com o combustível.
"O poder financeiro não deve definir a voz do artista. O leitor define a qualidade do escritor"
Mas a oralidade é como passa um testemunho, há que haver sincronização geracional e rigor?
Sim, a oralidade implica presença. Os mais velhos — guardiões dos nossos valores estão a ir embora. O livro pode servir como ponte. O mais velho que partiu pode ter deixado algo escrito. Alguém pode transcrever. É preciso que o livro não seja caro. Uma coisa é a produção científica, que exige altos investimentos. A outra é a preservação da nossa identidade por meio do registo e da memória colectiva, que deve ser incentivada. Não vale pensar que a indústria literária vai sustentar-se sozinha. Nós não temos mercado. Por um lado, não temos tantos leitores. Por outro, não é suposto haver tanta gente a escrever, como se vê agora. O ideal seria o livro ser barato e estar disponível até nos pontos mais remotos. Por exemplo, está-se a introduzir o ensino das línguas nacionais, mas com que suporte bibliográfico? É preciso bolsas de investigação e editais para fomentar a produção literária em línguas nacionais, para sustentar o ensino.
Há esta tendência de todos quererem escrever?
Que a solução seja todo o mundo escrever. Não faz sentido. Do mesmo jeito que nem todos têm de cantar. Hoje, a literatura está a ser engolida pela lei do mais forte no mercado. Se tenho dinheiro, posso pagar publicação e, logo, sou escritor. Se domino design, logo sou editor. A consistência está a ser sacrificada. Isso afecta a qualidade da obra. Falta selecção objectiva. Hoje, basta escrever uma crónica bonita no Facebook para sugerirem "deveria lançar um livro". Não se ouve "continue, aperfeiçoe, amadureça". A expectativa não deveria ser apenas publicar, mas manter a escrita como prática constante. Eu escrevo poesia desde 1993/94 e nunca parei. Estou sempre à procura de me superar. Hoje, há mais acesso às gráficas, muitos escrevem e já pensam em lançar um livro. Mas é preciso desconfiar do que é demasiado fácil. O poder financeiro não deve definir a voz de um artista. A qualidade do leitor define a qualidade do escritor. Sem leitores exigentes, surgem escritores iludidos.
(*) Íntegra da entrevista publicada pelo Jornal Expansão no fim-de-semana de 15 de Agosto de 2025, que resultou da condensação editorial de 50 minutos da conversa conduzida na marginal de Luanda pelo repórter José Gonga, com fotografias de Manuel Tomás.