A asserção atribuída a Octavio Paz, segundo a qual “não há poesia em si, mas em ti”, fazjustiça a pessoas da estaleca sociocultural de César Kangwe (pequena onça, na língua Umbundu). A lenda deixou o mundo dos vivos, fiquei a saber há instantes. De facto, pouca diferença faz que não se tenha convivido com ele no círculo mais restrito. O impacto do seu trabalho permanecerá sempre vivo, tanto nos arquivos sonoros da então Emissora Provincial de Benguela como na memória colectiva.
Tive o privilégio de o convidar em 2007 para a mesa-redonda que discutiu os desafios de valorização das línguas angolanas de origem africana, num espaço que realizei e co-apresentei com o Edmundo Francisco ao serviço da AJS (Associação Juvenil para a Solidariedade). Impressionava a distância a que o kota Kangwe se mantinha do microfone, no entanto preenchendo o espectro com a potente voz.
Trovador, compositor, guionista, locutor, actor de drama radiofónico de expressão Umbundu, o filho da Ganda ficou conhecido pelos episódios de “Cimbanda Kawele – haeye oloha, haeye osakula”, “Quem cacó ndaqui”. Através das radionovelas retratava-se em tom satírico as peripécias na coesão social de um país ainda novo, com um mosaico diverso que se tentava adaptar ao modo de vida na cidade. Kangwe e a sua equipa produziram durante duas décadas o que representa, sem sombra de dúvidas, a mais alta referência social e antropológica.
Para as gerações mais recentes o nome César Kangwe poderá soar algo distante, excepto talvez pela corruptela na saudação “Um braço!”, celebrizada em companhia de Agostino Tropa, Mirene Praia, Luwawa, Pedro Largo, Victorino Hosi, entre outros, no programa “Omenle Yocinjomba” (manhã de festa), depois rebaptizado como “Ocinjomba Cokoviteketeke” (festa da madrugada). Era um fenómeno de audiências e magnetismo digno de estudo sociológico, colocando meio litoral de Benguela acordado, rádiorreceptor debaixo do braço entre as 4h00 e as 7h00 da manhã.
A mística viria a ser corroída já mais recentemente, nos últimos quinze anos, numa iniciativa da Rádio Nacional de Angola que entendeu reduzir o tempo de emissão e “despejar” o magazine social da frequência principal da Estação que emite nos 92.9 FM, realojando-o numa frequência secundária. De resto, um gesto legítimo da entidade que gere a rádio, porém difícil de compreender, face ao capital social que o programa granjeara como património do povo, à parte um ou outro deslize editorial. Ocinjomba Cokoviteketeke unia os vários segmentos da sociedade, pela vívida identificação que estimulava em quem ouvia a língua/cultura projectada no espaço mediático oficial.
Quem o visse passear pela cidade, já em idade de reforma e se reinventando nas antenas da Rádio Morena Comercial onde Kangwe animava um espaço nocturno, podia não lhe captar suficientemente a envergadura do contributo prestado ao País e à memória colectiva, nas décadas de 1980-90. Eram tempos em que se contavam aos dedos de uma mão as casas com televisor, cabendo à rádio o papel social de educação e enriquecimento do imaginário, produzindo radionovelas e uma série de programas na linha daquilo que hoje se designa por infoentretenimento.
Mais velho Venâncio César Kangwe, ou Ngunsu Yowiñi (A força do povo), como também te deste a conhecer no Facebook, a nós resta-nos a vénia eterna à tua figura. Upongo wove uliliwa ndati? Twasala upongo, a sekulu. Wapesela ka nõlã!
Gociante Patissa | Lisboa, 22 Agosto 2025 | www.angodebates.blogspot.com







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