Para quem chega do litoral, as noites do Lubango são sempre frias. E secas. Dormindo
sozinho então… só piora. O que resta é desejar que o dia novo irrompa logo e nos tome conta das veias. Faço o percurso da Nossa Senhora do Monte ao aeroporto agarrado à fresca memória do carro assaltado. Perder documentos é coisa que não se deseja a ninguém em Angola, tal é a tendência de desorganização administrativa e funcional das instituições. Impera a narrativa de faltar quase tudo. Material, pessoas, tempo. Não raras vezes, a única coisa que falta é a vontade política de não deixar faltar.
Abril de 2017. O Boeing 737-700 da Taag efectua o penúltimo poiso da rota triangular. Enquanto bebe Jet-A1, na sala juntam-se os passageiros em trânsito aos locais. Aí surge o aprazível reencontro com o confrade Aguinaldo, noutro tempo assessor da União dos Escritores Angolanos, ultimamente alto quadro do Ministério da Cultura. A sua delegação tem encontro de cooperação na Namíbia. Quem me dera ser pulga e alojar-me no bolso de lapela só para aferir de que tratam os nossos diplomatas. É que na prática vê-se quase nada de intercâmbio entre Angola e a antiga colónia alemã/britânica no consumo de produtos artísticos, apesar haver povos de um mesmo grupo etnolinguístico dos dois lados, fruto da divisão do então reino dos Kwanyama pela conferência de Berlim.
Voo tranquilo. Recebe-me Windhoek ensolarada e a estranhar que não regressasse para safari e/ou consultas médicas. Na paragem de mini-autocarros, congelei quando o gerente da estação, ao elaborar o manifesto, pediu dados do familiar a contactar em caso de emergência. Seria premonição? De repente, divago em silêncio sobre a efemeridade da vida, a iminência da morte longe de casa, a adrenalina de aventuras solitárias. Coube-me o assento ao lado de duas simpáticas damas na casa dos 30 e poucos anos. Uma, ocidental, professora comunitária de inglês em fim de missão na África do Sul. A outra, nativa, sangue khoi-san e alemão. A primeira lia “Disgrace”, romance do sul-africano John Coetzee, que de imediato vira tema de conversa. Li-o há uma década mas desisti. É sobre um professor castigado sob acusação de assediar uma estudante menor.
Swakopmund é cidade pequena e limpa. Arquitectura, clima e ritmo de vida alemães. Acolhi a ideia de ver um quarto no Skeleton Beach. Não sabia que era para “backpackers” (mochileiros), conceito de viagem de baixo custo. Uns instalam tendas, outros dormem em beliches, como recrutas em casernas, sem divisão de homens e mulheres. Paguei um pouco mais pela suíte. À nossa chegada, ouvia-se choro de bebé na casa ao lado. Johny, o gerente, pergunta se tenho filhos. Ainda não. Devias pensar logo nisso, insiste ele, na lógica de homem e mulher igual a coito. Não era o caso. Johny é bôer, ar rude e carismático. Bebe cerveja o dia todo. À noite, visita com violão clássicos da world music.
Dando pela falta de sabão no WC, abordei o gerente. Isso não é um hotel! Vou-te dar o meu sabonete pessoal! Depois notei que não trocavam a roupa de cama nem as toalhas. É suposto o hóspede se governar. O matabicho é a única refeição. A sala comum é um frenesim. Turistas, motards, hippies e afins. No segundo dia pedi a substituição das pilhas do comando da TV. Mandou-me operar com os dedos. E desabafou com outro bôer em afrikaans. Retive os termos “kaffir” (pejorativo para negro. Conhecia de ler “Long Walk to Freedom”, de Mandela) e “stupidity” (estupidez). Quase explodi para denunciar a atitude racista, mas optei por absorver o ambiente e convertê-lo em matéria literária. Certa vez, ele ficou com a voz cansada e entendi improvisar acordes no violão. Ficamos amigos.