Há um ano e meio que venho adiando a crónica sobre a última
viagem que fiz à República da Namíbia. Adoptei há uma década o país vizinho e
irmão como rota de férias e turismo, não me movendo outro critério senão o de não
possuir a paciência de monge. Situações há em que espreitar a lista de
requisitos para a obtenção do visto até faz doer a vista, né?
Iria a conduzir para Lubango (400 km), pernoitar e voar duas
horas até Hosea Kutaku, o heroico aeroporto internacional de Windhoek. O restante
do roteiro é cheque em branco. A única certeza era a de não se ficar pelo mais
do mesmo, a região norte ou a capital. Cheirava a litoral. Swakopmund e a
portuária Walvis Bay? No ar, aquela inevitável tensão de pré-viagem que nos faz
companhia em noite de véspera. Nem o sono consegue dormir.
Amanheceu. Estamos prontos, digo a mala, a mochila, a
bolsa da máquina fotográfica e eu. O hiato entre a serventia alagada por inconveniente
chuva de subúrbio sem drenagem e o parque de estacionamento faz-se a bordo de kupapata.
É um meio de transporte motorizado que se define pela adrenalina. Na verdade,
olhando para o quadro da sinistralidade rodoviária, kupapata é já questão de
saúde pública. São 9h da manhã. O entusiasmo da viagem logo dá lugar ao choque.
A viatura fora vandalizada no parque de estacionamento do hospital central. Vidro
quebrado, portas abertas, interior da viatura feito caos. O que procuravam? Teorias
de conspiração não seriam de todo descabidas.
Sabia por onde iniciar o inventário de perdas. A carteira
de documentos: BI, carta de condução encarnada, cartões de eleitor, contribuinte,
segurança social, passe de membro União dos Escritores Angolanos, cartões bancários
e 900 USD. Você é figura pública, se calhar o erro foi comprar dólares na rua. Alguém
te marcou. Ora, bem. E onde é suposto as figuras obterem divisas, com as casas
de câmbio às moscas e a banca que conhecemos?
O telefone é todo tentáculos. Impressões digitais saltam à
vista no pó da chaparia, ainda presente a pedra usada contra o vidro. O investigador,
este, descarta. Alega contaminação do cenário. É para acreditar, senhor agente?
Fácil inferir que não há estaleca laboratorial para o exame fora de Luanda,
muito menos a base de dados para compulsar. No recinto da Investigação Criminal,
outra viatura assaltada do mesmo jeito. É coisa de rede.
O questionário de abertura do processo é penoso, de tão repetitivo
e lento. Daí sou encaminhado para o Comando Municipal onde se lavram declarações
provisórias, cada documento furtado com o seu preço. Vejo-me roubado duas vezes.
Intriga ler a catalogação “documentos extraviados”. Escusado é rebater, não vá eu
perder ainda mais tempo. Posto na seguradora, inicia o processo de reembolso. São
12h já mas a fome está de folga. Informações quanto ao vidro substituto apontam
para o Lobito. Para lá vamos.
Às 17h, vidro reposto. A solidariedade da família e
amigos aconselha abortar a viagem. Prevalece a determinação, embora pouco
sustentável, sem poder movimentar as contas. Eis que alguém disponibilizava 40
mil Kwanzas, providenciais para hotel no Lubango e parque do carro. Contava eu com
uma reserva apertada de dólares e o trunfo na manga: até então, sem querer, possuía
duas cartas de condução, ficando a salvo a da SADC. Às 18h30 parti. Odeio conduzir
à noite mas ousei passar por isso. Tinham-me roubado os documentos, o dinheiro.
Iria agora deixar de viajar?! Assim eles ganhariam demais, né?
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