"É
um mal que vem de longe e deram continuidade a um certo preconceito que existe
e, portanto, não há a promoção normal dos não brancos, e isso chateia-me
sobremaneira. Portugal tem a responsabilidade de ter ido lá, de ter fabricado
gente de lá - quando digo fabricado se calhar é pejorativo, mas entrosou -, fez
filhos, muitos voltaram, com a mesma tónica de instrução. Onde é que eles
estão? Ponham lá os homens a funcionar. Só há um que eu conheço, que está no
CDS [Hélder Amaral]. Não me fale da lusofonia se faz favor. Vamos à Alemanha e
há miúdas com programas de rádio, de televisão, na França então... Por isso é
que eu não gosto do termo lusofonia, CPLP. "Ai falamos todos em
português." Está bem, mas eu nunca fui a tua casa. Ao contrário, já entraste
na minha. Porque eu abro a porta às pessoas, e quando abro não estou a ver se é
branco, preto, azul, encarnado, branco. Nunca entrei na casa dos meus vizinhos
aqui. Não sei se temos de considerar aquele portuguesismo ou então aquele
estado preconceituoso e receios e medos."
Bonga Kwenda, 75 anos, músico
angolano radicado em Portugal (reportagem publicada originalmente no Diário deNotícias, conforme se retoma nas linha que se seguem)
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Em vésperas de celebrar 76 anos, músico angolano recorda a sua infância, a carreira e os truques para enganar a PIDE ao chegar à Portugal. Continuamos a correr até aos 75 anos sempre com Angola como pano de fundo, que em breve se tornarão 76, cuja passagem será celebrada num concerto-homenagem a 5 de Setembro, na Aula Magna, em Lisboa
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Em vésperas de celebrar 76 anos, músico angolano recorda a sua infância, a carreira e os truques para enganar a PIDE ao chegar à Portugal. Continuamos a correr até aos 75 anos sempre com Angola como pano de fundo, que em breve se tornarão 76, cuja passagem será celebrada num concerto-homenagem a 5 de Setembro, na Aula Magna, em Lisboa
Texto de: Mariana Pereira, Diário de Notícias, Portugal,
29.08.2018
Guarda as cartas que lhe enviam quem o
ouve?
Quando há casos específicos. Porque houve um poema lindo e
maravilhoso de alguém que narrou o espetáculo, filhos que nasceram com a
música, mulheres que reencontraram o marido, velhos na agonia quase a morrer
que põem a música do Bonga. Ainda no outro dia, em Braga, um homem de cadeira
de rodas queria ver-me. Em casa era a filha que o ajudava e ali ele levantou-se
da cadeira e andou. [Guardo] Principalmente a lágrima no canto do olho deste
povo fervoroso, cada vez mais jovem, que me vem ver nos espetáculos e está ali
com toda a emoção a cantar.
Mesmo quando é em kimbundu, não é?
Principalmente
quando é em kimbundu. Eu quebrei o gelo daquela coisa do preconceito, porque há
muita gente que não fala inglês e aceita a música inglesa normalmente. Por que
não aceitar a minha música que é em kimbundu, que eles não compreendem, da
mesma forma que não compreendem o inglês? Tive de me impor.
Mas tenho consciência de ter rebatido essa lacuna, para
diminuir este preconceito de pensar que há culturas superiores. Vendo mais
discos no exterior do que na minha terra, onde eles falam kimbundu.
Lembra-se de sons da sua infância no
Kipiri?
É o que mais me
lembro. São os sons do barulho das crianças na rua, que fazem falta aqui, não é
barulho ensurdecedor, não me apoquenta. Esse barulho da criança com vida, que
brinca, que chama outra, o pregão das coisas que se vendiam, e depois o próprio
cheiro do mato, eu nasci lá.
Era mesmo considerado matoense, pejorativamente, por uma
série de indivíduos assimilados à cultura europeia, colonial. Esses barulhos
fazem-me falta, como o cheiro do mato, para não falar dos comeres tradicionais,
típicos. Oh my God.
O Bonga cozinha?
Sim. Aprendi com
a minha avó. Tive a curiosidade [e ela]: “Não, homem não, homem vai fazer
compras.” Eu disse: “Avó…” Como criança, já sabia que falar Bonga kimbundu e
tocar ou cantar como faziam, era também uma forma de resistência?
Nós demo-nos conta disso muito cedo. Já tínhamos o exemplo
daqueles que antes de nós conservaram isso e tocaram esses batuques, que eram
pejorativos – o batuque passou a ser de salão, em resultado da nossa luta.
Os instrumentistas e os turmistas – turmas que vinham em
volta das casas nos bairros periféricos da zona de Luanda – tocavam temas
críticos da sociedade.
O Carnaval é a maior festa que nós temos em Angola, mas não
era apresentar o desfile nem ao Presidente nem aos governadores da época
colonial. Era um Carnaval que se vivia em cada bairro com o seu grupo de 200,
300 pessoas, de casa em casa, a tocar os temas críticos da sociedade em que se
vivia: a falta de água em casa, os teus filhos são mal-educados, a negritude
para ti já não interessa, a mulher que para melhorar a raça casou-se com um
branco… Temas lindos de morrer, não queira saber. Isso era o Carnaval.
Nós acompanhávamos, era a liberdade total.
Eram dos únicos momentos em que podiam fazer isso abertamente?
Evidentemente.
Tínhamos uma cláusula dada pelo colono na altura. Nós temos muita música que
vem do Carnaval. Os velhos compuseram coisas incríveis, e reivindicativas
também. Ao mesmo tempo era um miúdo que corria e corria.
Porque é que corria tanto?
Porque tinha
essas condições natas. Primeiro, porque gostava muito de correr, e depois no
bairro era uma espécie de chefe de turma. Havia qualquer coisa a fazer e eu…
puf, já fui, e eles vinham atrás.
Mesmo quando a gente ia roubar frutas a um quintal, ninguém
me apanhava. Depois fazíamos competições desportivas de bairro contra bairro.
Fazíamos atletismo, que era o que mais gostávamos. Púnhamos uma estaca aqui e
uma estaca ali e íamos a correr. Eu distanciei-me dos colegas. Depois fomos
federados mesmo. Foi aí que pulverizei os recordes de Angola, e a pedido do
Benfica venho para Portugal.
Lembra-se da sensação de correr nos
musseques?
E de que maneira!
Porque ali não temos pista, é areia. É complicado saber correr: tem uma
montanha, um buraco, era correr aos ziguezagues. Mesmo na pista do estádio
único que tínhamos, os Coqueiros (em Luanda), tínhamos de saber, porque era uma
pista de cinza com areia e carvão.
Quando o Benfica o convidou podia não ter
vindo?
O meu pai só
aceitou por uma questão sociopolítica. Porque nós não tínhamos futuro, o nosso
futuro era ser funcionário público depois da tropa. Com os nove irmãos que
éramos, ele e eu é que trabalhávamos, que levávamos o kumbú (dinheiro) para
casa.
Mas ninguém tinha necessidade nenhuma de saír de Angola,
porque vivia-se muitíssimo bem. Não estou a dizer que a colonização era boa,
estou a falar da nossa vivência na família africana; e não digo só o pai, o
avô, não, é o vizinho, que também faz parte da família, é um aglomerado de
pessoas que te frequentam, que te ajudam.
Nunca pensei, que a gente ao passar por uma pessoa na rua,
não cumprimentasse. Isso é na Europa. Disse isso logo na primeira carta…
O que é que dizia a sua primeira carta?
“Ó pai, sabe uma
coisa? Aqui cada qual por si, Deus para todos. É a tónica aqui desse sítio.” E
o meu pai respondeu-me: “Então tens de ter dinheiro sempre, que a gente daqui
não te vai mandar nenhum”.
Encontrou um Portugal racista?
Encontrei um
Portugal à toa, no sentido desta convivência lusófona. Portugal tinha de
resolver melhor o problema da convivência dos povos que eles foram descobrir.
Os que exploravam aqui eram os mesmos que exploravam lá em baixo. Por isso é
que eu disse: espera lá, eu não vou contra o povo português, porque quando eu
vou para as barracas, para os bairros típicos daqui há miséria, há fome, há
desgraça, há descontentamento.
São os maiorais daqui que colonizam a minha terra, portanto
não sou contra os portugueses, decididamente. Então fui arranjando amigos, já
havia aqui uma data de indivíduos que já conviviam entre si, sobretudo no
desporto. Foi uma das boas coisas que me aconteceram na vida: com as viagens
que fazíamos, e onde iam sempre uns elementos que a gente não sabia quem eram,
afinal eram os bufos, os informadores da DGS.
Quando percebeu que eles estavam à sua
volta?
A gente percebeu
imediatamente. Quando tínhamos conversas entre dois, três africanos, havia um
que estava lá a esgravatar no chão. Nós tínhamos umas tocatinas entre nós, e
havia sempre um convidado que ninguém sabia quem era, que fazia os relatórios.
Sempre que vinha alguém de Angola, a gente fazia uma festa privada, e se eles
não estavam lá dentro estavam fora, a ver quem entrava.
Era um controlo muito chato. E não deixavam de fazer nada por
causa deles? Não, não. Eu, por exemplo, saía e levava cartas clandestinas para
serem entregues lá fora. Iam nas cuecas. Não ia ser revistado.
Como é que percebeu que tinha de sair de
Portugal?
A minha célula,
que vivia em Luanda, já tinha sido engavetada. E há um indivíduo que vem de
Angola, o André Mingas, que me diz: “Tens de bazar ontem.” Nessa mesma noite eu
peguei o avião e bazei. Na fronteira: “Então, mais uma prova?” “Não, vou
comprar discos à Holanda.”
Quando o avião já ia a sobrevoar fiz um adeus com a mão
fechada.
Esteve dividido por uma obrigação de estar
em Angola naquele tempo, ou sentia que estava a fazer o que devia?
Não, eu estava a
fazer o que devia fazer, e muitíssimo bem. Essa fase foi bastante agradável. Em
Angola não és tido nem achado, e não te dão espaço.
O Angola 72 foi então a sua luta? Foi o pontapé de saída para
uma série de obras. Eu nem pensava ser artista. (O disco) é a minha vivência de
23 anos no calor quente dos bairros suburbanos de Luanda, tudo quanto eu vi, assisti,
participei, tudo aquilo em música.
Quando chego à Holanda, com os cabo-verdianos, com as
tocatinas deles, a certa altura o indivíduo que era proprietário da Morabeza
Records (Djunga d’Biluca), que gravava todos os cabo-verdianos, disse: “Tu com
essa voz rouca, porque é que não gravas?”
Acabei gravando mesmo. Tudo quanto eu tinha saiu de
informação, de acontecimentos, e sobretudo de apelos, em kimbundu.
Assim era uma mensagem fechada?
Absolutamente. E
como é que os angolanos tiveram acesso ao disco? Os discos do Djunga d’Biluca
iam para Angola normalmente, pelos embarcadiços. E o Angola 72 chegou lá, só
que foi proibido logo a seguir. Os próprios informadores é que traduziram
aquilo: “Eh pá, cuidado…”
A mudança de nome de Barceló de Carvalho
para Bonga Kuenda, não foi só para não ser descoberto. O que significa?
Era um nome
clandestino, em primeiro lugar. Significa “apanha e baza”, ou “apanha e corre
sem parar”. Tem a ver comigo, estou sempre na brecha.
Ainda vive assim?
Felizmente.
Continuo a ser solicitado. Muita gente deixou de gostar do
Bonga porque recebeu o dinheirinho dos políticos da minha terra de origem.
Tentaram complicar. Mas não complicaram tanto, na medida em que eu tinha
empresário francês, casa de disco situada em França, e a maioria dos
espetáculos eram realizados da França para cima.
O que significa para si a França?
Abertura, a maior
abertura facultada. Grandes recordações, vivências com os artistas franceses,
que não se fecham num pedestal, abrem as portas, com participações, duos. Quem
me dera a mim que os angolanos fossem assim em matéria de realizações de obras
musicais e de não compromisso com as esferas políticas. A França foi aquela
coisa para Miriam Makeba, Manu Dibango, Salif Keita, Cesária Évora, mesmo a Linda
de Suza, portuguesa. Voltemos a Angola.
O que acha do novo Presidente, João
Lourenço?
O João Lourenço
chegou. E tem muita coisa para resolver, deixada pelo seu antecessor. Esse
“chegou” é de alívio? Tomando em conta os males causados aos angolanos e à própria
Angola, é chegou bem. Ele próprio já pôs o dedo na ferida, o que é muitíssimo
bom. Porque estávamos habituados a virar o disco e tocar o mesmo, com os mesmos
proprietários do país, os únicos beneficiários da Angola Independente.
Estamos à espera que esses dinheiros sejam aplicados não em
edifícios para inglês ver mas em creches, escolarização, medicamentos,
hospitais e naquele povo que está triste. A gente vê nas ruas. Muita coisa
degenerou.
Não tínhamos tantos assassinatos e assaltos, é o povo que está
precipitado: “Como é que vou comer amanhã?” Mas que ele chegou bem, chegou. O
Bonga é conhecido por ter dialogado com quem concordava e não concordava, Jonas
Savimbi, Samora Machel, ou o ex-presidente angolano ,José Eduardo dos Santos.
Falei com todos eles, tive conversa amena, conversa de
africano para africano.
Valeu sempre a pena?
Nalguns sim,
noutros achei que não devia ter lá ido.
Não devia ter ido ao José Eduardo dos
Santos?
Não. Faltaram
muitas coisas e principalmente a coerência da pessoa no sentido dos propósitos
que foram pronunciados. Gosto das pessoas quando são coerentes.
Está a falar do período pós-Independência e
do que Angola se tornou depois?
Evidentemente. Eu
não sou dos que estão cá fora e veem a banda passar. Eu mando os meus recados em
função do conhecimento que tenho da realidade do país.
Mesmo depois da Independência teve músicas
proibidas, certo?
Sim, e de que
maneira! Nem passavam. Então depois de ter ido ver o (líder da UNITA Jonas)
Savimbi… Como é que viveu esse período? No pós-Independência em Angola
inventou-se uma guerra para retirarem dali muita gente que não convinha, e para
estarem mais à vontade para instalarem o marxismo-leninismo. Esta foi a grande
realidade.
Eu estava fora, e perguntei: “Mas porquê a saída dessas
pessoas todas, funcionários públicos, advogados, oficiais? Aviões fretados?
Quem é que anunciou essa guerra? A que propósito? Travem os revolucionários. A
população é maior do que os revolucionários”. E não travaram.
Quando eu vim para aqui os hotéis no Estoril estavam cheios.
E eu: “Quem é que pensou assim? Não há guerra nenhuma”. Fui para Angola para
ver, e quando chego, estou com os tais comandantes que vieram da guerrilha e
estou a vê-los. Havia uns tipos honestos que diziam: “A gente nunca pensou que
Angola estivesse assim; olha aquela criança com aquele carro”.
Está a dizer que não tinham noção do que
era o país?
Nem pouco mais ao
menos. Eles chegaram e tiveram uma curiosidade terrível. “Isso é assim? É nisso
que vamos mandar?” Eu falei com os chefes. Falei com o Agostinho Neto, porque
eu era o artista conhecido, que tinha feito o disco Angola 72, que mobilizou
muita gente.
Mas eu disse-lhes: eu não fiz a música para mobilizar carne
de canhão.
Responderam-lhe?
Disseram: “Ah,
você é um vendido.” Mas encontrei a alguns que eram conscienciosos e já tinham
capacidade de análise.
A maior parte deles morreram, como que por azar. Pode
recordar como é que o seu encontro com Jonas Savimbi teve tanto impacto? Havia
milhares de pessoas mobilizadas para ver o espectáculo, havia jornalistas de
todos os órgãos de informação.
Eu não quero fazer promoção do Savimbi, mas ele não é aquilo
que se disse. E como se viu depois que ele se matou – vinham matá-lo e ele
matou-se primeiro para não ser humilhado (a versão oficial é que foi morto em
combate) -, a UNITA cresceu, cresceu, porque era anticomunista e os EUA na
primeira linha davam todo o apoio. Eu vi o Savimbi falar com o Reagan tu cá, tu
lá.
“Vais mandar o Stinger (míssil)? Não vais mandar o Stinger?”
E mesmo tendo a parte Sul de Angola sob controlo, que é a maior, ele nunca quis
dividir aquilo. Para mim isso tem uma importância… A Coreia dividiu-se.
Comecei a ter uma amizade por ele. O Agostinho Neto foi o
primeiro a dizer que não podia haver eleições. “Porquê, senhor Presidente?”
“Eles ganham, são mais.” Podia ser só isso. Mas depois há o 27 de maio de 77,
que é a pior bodega que aconteceu na África Austral. Porque é que aquilo
aconteceu? Yah.
Continua a ir a Angola?
Não vou com tanta
frequência como anteriormente. Mas considero que Angola é nossa, o povo é
nosso, temos todo o direito e a obrigação de participar e estar com ele. Há um
impedimento que resulta de uma política levada a ferro e fogo que tende a
acabar.
Hoje o Presidente já não vai com aquela comitiva toda, com
metralhadoras, já não é assim, já esta a diminuir esse lado militarista e
sanguinário, o que é muitíssimo bom para Angola e para os angolanos. E há
miúdos que falam. Há jornais que saem com títulos incríveis, a retratar a
sociedade. Mas há outras grandes evoluções a aplicar imediatamente para que o
povo seja amparado.
Tem vontade de fazer um grande concerto em
Angola neste momento?
Tenho sempre
vontade de fazer algo que seja espontâneo, natural e desejado pelos indivíduos
detentores do poder, porque significaria que eles estão mais relaxed, mais à
vontade e… mais humanos, vamos admitir. Mas não era só o Bonga sozinho. Nós
ainda estamos naquela fase: enquanto houver um partido a decidir, e normalmente
mal decidido…
Quer ver essa?
Os mais
inconvenientes na minha terra são os doutores, engenheiros, advogados, porque
são imitadores da cultura do outro, e isso é triste. E são incapazes de ter uma
conversa com a mãe que é lavadeira, com o pai que é analfabeto, têm vergonha
porque são complexados, e estão sempre com a gravata.
Quarenta graus à sombra e ele está com uma gravata quase a
sufocar e um casaco que veio de Londres, e as falas idênticas a qualquer
telejornal em Portugal. Que vergonha! Esse tipo de indivíduos é prejudicial à
nossa coesão artística, social, psicológica. E são eles que são os professores,
os generais, os ministros. Onde é que a gente vai parar? Esse é que é o grande
recado do Bonga. Como foi passando aos filhos e aos netos essa maneira de ser
africana de que tanto fala? É a maneira de ser em casa. Não digo nada a
ninguém, eles veem. Se não vê é porque não está atento.
A melhor comida deles é o funge. Quem faz?
É o pai. E depois
a tal respeitabilidade. A gente não dá porrada nas crianças, nem pouco mais ou
menos. Eu faço como o meu pai: a gente olha e o olhar quer dizer quase tudo. Só
aquele olhar: já lhe bati. Eu fazia a mesma coisa. Quando eu era miúdo o meu
pai só olhava. E depois, em termos de educação tínhamos uma coisa bonita, a
educação da rua. Eu sou um privilegiado, fui educado na rua também, pelos pais
e pelos avós dos outros, que nos viam a fazer uma asneira: “Ó meninos!”,
davam-nos um puxão de orelhas, e a gente tinha de se calar, ir para casa e não
dizer nada. Isso é fabuloso.
Como é que vai ser este concerto no dia 5?
Surpresas.
Vou cantar o quê?
As mais
badaladas, as que estão na boca do povo, mas principalmente vai ser festa.
Primeiro, é a festa do meu aniversário, e depois estar ali com pessoas que me estão
a dizer assim: “Você é gente, é pessoa, você deu-nos coisas maravilhosas,
continua a dar.”
A partir daí tu estás disposto e disponível. Venha o
champanhe, os amigos, os antigos, os novos, principalmente essa miudagem que eu
não acreditava que iam reagir assim e que me grita na rua: “Mariquinha vem
comigo para Angola.”
É bem tratado aqui em Portugal?
Sou. Vá comigo ao
mercado e vai ver, vou comprar a mandioca, os peixes, a carne, e vai ver como
me tratam. Eu sou um privilegiado porque vou ao restaurante e é o patrão que
vem, tratam-me bem. O que não quer dizer que não haja preconceito, existe sim
senhor. Por isso é que eu não gosto do termo lusofonia, CPLP. “Ai falamos todos
em português.” Está bem, mas eu nunca fui a tua casa. Ao contrário, já entraste
na minha.
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Não sou eu que irei desmentir o kota Bonga, de maneira nenhuma. Portugal tem um longuíssimo caminho a percorrer até (finalmente!) aceitar as suas comunidades afro-portuguesas, indo-portuguesas, sino-portuguesas, ciganas e outras como fazendo parte integrante de si próprio. Portugal não seria o que é se não fossem os povos que escravizou e colonizou, para o bem e (sobretudo) para o mal. Será que estaremos (finalmente) a assistir a uma reabilitação dessas comunidades, quando o primeiro-ministro, António Costa, é filho de um colonizado de Goa, na Índia, e a ministra da Justiça, Francisca van Dunem, é uma ex-colonizada de Angola? É ainda muito cedo, mesmo muito cedo, para que se possa tirar uma tal conclusão. Já no séc. XVIII, um dos homens mais poderosos que Portugal já teve ao longo dos seus quase novecentos anos de história, o Marquês de Pombal, tinha uma avó negra. O que foi que aconteceu para que quase 300 anos depois tenhamos a sensação de que não saímos do mesmo sítio?
Muito pertinente contributo, caro Fernando Ribeiro. Um abraço
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