A banalidade dos assuntos é relativa, a inalienabilidade dos direitos também.
Man’Filas é kota já, angolano de pai e mãe. É fixe, mesmo que alguns se assustem porque ele quase nunca ri – o espelho é que lhe disse um dia que ficaria feio pela falta de dois dentes logo à entrada da boca. Então, mas é obrigatório rir para ser simpático?! Se nasceu (ou não) quando, isso não importa.
Man’Filas nunca tratou ninguém por “cão!” nem por “cadela!”, porque – e todo o africano sabe disso! – boca de mais velho pode até ter dentes podres, mas dela sai sempre sabedoria. Aliás, ele já ouviu várias vezes a metáfora “tu és um cão, aquela gaja é uma cadela!”, algo que nunca conseguiu digerir. Às vezes parece que tem razão ao considerar injusto o rótulo de “cadela!” a eventual mulher promíscua ou com excessiva frequência na prática do sexo – já que cadela só pratica coito quando está no período fértil, portanto nada de “fornicar” por passatempo (ou desporto, há quem o diga). Bom, são ideias dele e é melhor não se meter!
Ora, se pessoa tem direito a não ser aviltada, neste caso da cadela fica só assim?! Bom, talvez não seja sensato recorrer ao vector da igualdade de circunstâncias, afinal, pessoa é pessoa, cão é cão! Eis um debate constante no secretismo da imaginação do Man’Filas.
A amizade entre o homem e o cão tem a idade do preto-e-branco da zebra. Man’Filas até gosta da lealdade do cão, que no rigor da palavra é raríssima entre os humanos para consigo mesmos, mas ainda assim o cão é inferior ao ser humano. Tanto que, sendo o homem malfeitor rotulado de “cão!” como sanção, já o contrário não é válido; cão virtuoso não é chamado “pessoa!” como recompensa.
A guerra é um parágrafo transversal na história de cada angolano. Man’Filas também foi valoroso combatente durante o conflito armado. Mas não foi o patriotismo que o moveu. Ele apresentou-se (voluntariamente?) revoltado pelo repto “só restará civil de cão, quem não quiser ir à tropa terá de retroceder ao ventre da sua mãe”. Recuamos aos anos 80 e dizem ser Kundy Paihama o autor do repto, na época comissário provincial de Benguela (bom, já disse tanta coisa o mais velho, que meter mais uma palavra na boca dele não custa nada…). Pior que isso foi suportar a recruta, onde se ouvia dos instrutores que um mancebo estava abaixo de cão morto.
As eleições de 1992 viriam resultar num fracasso (impossível de esquecer, chato de lembrar) com profundas implicações, entre as quais uma dramática penúria alimentar… E foram surgindo as ONG’s internacionais, e com elas as nacionais. Man’Filas, cujo fundo nunca já chegou para as propinas escolares, quanto mais para passagem para as estranjas!, abraçou a causa do aprender-fazendo! E não se surpreendeu poucas vezes enquanto acompanhou a escola de futebol infanto-juvenil do francês Jacques (logístico da CRS) no Compão. É que, no estágio, os atletas jantavam às vezes leite com sanduíche mista, quando os cães monopolizavam massa guisada com carne, entre outras iguarias… muito longe do paradigma carne-para-gente, ossos-para-cães! Aonde vamos parar?, indagava-se. Será que chegaremos neste século 21 a ver cães comendo à mesa?!, continuava.
O aprender-fazendo é a magia que potencia o pessoal envolvido no sector da sociedade civil, que ganha aqui em workshops e seminários o know-how vindo das universidades de lá. E o bom das ONG’s é ainda a sensação de liberdade/autoridade, acrescida à automática busca pela justiça em prol dos que não têm voz. Mas a oportunidade e a visibilidade fizeram surgir uma espécie de “elite”, composta por intelectuais (voluntários?) tentados a brilharem mais que a causa defendida através de acções directas de advocacia social.
Tarde de 11 de Setembro. Para trás ficava o quintal da embaixadora dos Estados Unidos, após a cerimónia da assinatura do acordo de financiamento de micro-projecto. O Land-cruiser serpenteava no engarrafamento luandense a caminho da “província”. Uma breve paragem impunha-se para visita de cortesia a uma excelente assessora. Uma vez lá, Man’Filas torcia o nariz ao som incoerente da gaita do marido, que era uma "ilha" na sala. E veio o cão, com aquele aspecto feroz de cães de ricos, sem no entanto alterar a descontracção da conversa. Às tantas, o dono da casa, por sinal um distinto activista social, quebra as torres: "aí vocês estão sentados no lugar dele". Pela primeira vez na vida, Man’Filas via-se obrigado a ceder o sofá ao cão, ocupando outro assento.
Man’Filas é kota já, angolano de pai e mãe. É fixe, mesmo que alguns se assustem porque ele quase nunca ri – o espelho é que lhe disse um dia que ficaria feio pela falta de dois dentes logo à entrada da boca. Então, mas é obrigatório rir para ser simpático?! Se nasceu (ou não) quando, isso não importa.
Man’Filas nunca tratou ninguém por “cão!” nem por “cadela!”, porque – e todo o africano sabe disso! – boca de mais velho pode até ter dentes podres, mas dela sai sempre sabedoria. Aliás, ele já ouviu várias vezes a metáfora “tu és um cão, aquela gaja é uma cadela!”, algo que nunca conseguiu digerir. Às vezes parece que tem razão ao considerar injusto o rótulo de “cadela!” a eventual mulher promíscua ou com excessiva frequência na prática do sexo – já que cadela só pratica coito quando está no período fértil, portanto nada de “fornicar” por passatempo (ou desporto, há quem o diga). Bom, são ideias dele e é melhor não se meter!
Ora, se pessoa tem direito a não ser aviltada, neste caso da cadela fica só assim?! Bom, talvez não seja sensato recorrer ao vector da igualdade de circunstâncias, afinal, pessoa é pessoa, cão é cão! Eis um debate constante no secretismo da imaginação do Man’Filas.
A amizade entre o homem e o cão tem a idade do preto-e-branco da zebra. Man’Filas até gosta da lealdade do cão, que no rigor da palavra é raríssima entre os humanos para consigo mesmos, mas ainda assim o cão é inferior ao ser humano. Tanto que, sendo o homem malfeitor rotulado de “cão!” como sanção, já o contrário não é válido; cão virtuoso não é chamado “pessoa!” como recompensa.
A guerra é um parágrafo transversal na história de cada angolano. Man’Filas também foi valoroso combatente durante o conflito armado. Mas não foi o patriotismo que o moveu. Ele apresentou-se (voluntariamente?) revoltado pelo repto “só restará civil de cão, quem não quiser ir à tropa terá de retroceder ao ventre da sua mãe”. Recuamos aos anos 80 e dizem ser Kundy Paihama o autor do repto, na época comissário provincial de Benguela (bom, já disse tanta coisa o mais velho, que meter mais uma palavra na boca dele não custa nada…). Pior que isso foi suportar a recruta, onde se ouvia dos instrutores que um mancebo estava abaixo de cão morto.
As eleições de 1992 viriam resultar num fracasso (impossível de esquecer, chato de lembrar) com profundas implicações, entre as quais uma dramática penúria alimentar… E foram surgindo as ONG’s internacionais, e com elas as nacionais. Man’Filas, cujo fundo nunca já chegou para as propinas escolares, quanto mais para passagem para as estranjas!, abraçou a causa do aprender-fazendo! E não se surpreendeu poucas vezes enquanto acompanhou a escola de futebol infanto-juvenil do francês Jacques (logístico da CRS) no Compão. É que, no estágio, os atletas jantavam às vezes leite com sanduíche mista, quando os cães monopolizavam massa guisada com carne, entre outras iguarias… muito longe do paradigma carne-para-gente, ossos-para-cães! Aonde vamos parar?, indagava-se. Será que chegaremos neste século 21 a ver cães comendo à mesa?!, continuava.
O aprender-fazendo é a magia que potencia o pessoal envolvido no sector da sociedade civil, que ganha aqui em workshops e seminários o know-how vindo das universidades de lá. E o bom das ONG’s é ainda a sensação de liberdade/autoridade, acrescida à automática busca pela justiça em prol dos que não têm voz. Mas a oportunidade e a visibilidade fizeram surgir uma espécie de “elite”, composta por intelectuais (voluntários?) tentados a brilharem mais que a causa defendida através de acções directas de advocacia social.
Tarde de 11 de Setembro. Para trás ficava o quintal da embaixadora dos Estados Unidos, após a cerimónia da assinatura do acordo de financiamento de micro-projecto. O Land-cruiser serpenteava no engarrafamento luandense a caminho da “província”. Uma breve paragem impunha-se para visita de cortesia a uma excelente assessora. Uma vez lá, Man’Filas torcia o nariz ao som incoerente da gaita do marido, que era uma "ilha" na sala. E veio o cão, com aquele aspecto feroz de cães de ricos, sem no entanto alterar a descontracção da conversa. Às tantas, o dono da casa, por sinal um distinto activista social, quebra as torres: "aí vocês estão sentados no lugar dele". Pela primeira vez na vida, Man’Filas via-se obrigado a ceder o sofá ao cão, ocupando outro assento.
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Mais uma lição aprendida: afinal, Direitos Humanos (do cão) são liberdades que as pessoas têm pelo facto de serem pessoas (ou cães).
Mais uma lição aprendida: afinal, Direitos Humanos (do cão) são liberdades que as pessoas têm pelo facto de serem pessoas (ou cães).
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Gociante Patissa, aeroporto da Catumbela/bairro da Fronteira, Benguela, 20 Julho 2009
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Uma lição que muitos deviam aprender.
Por enquanto, o meu deita-se aos meus pés enquanto almoço. Quando soa a campainha, levanta-se para receber com alegria quem chega.
Não gosto dos donos dos cães que ladram sem saberem por quê!
Belo tema.
Abraço
Outro abraço.
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