quarta-feira, 18 de julho de 2012

Reflexões avulsas: amizade, como valor, tem valor algum?

Fonte: algures no Facebook
No passado sábado, fui convidado para uma mesa-redonda radiofónica sobre “Amizade". Acabou sendo interessante o exercício de análise de tema aparentemente banal, pela sua universalidade, e ao mesmo tempo extraordinário, visto pela perspectiva sociocultural angolana.

Amizade, como substantivo, parece ser tão evidente que o Dicionário Universal (Texto Editora 1999) não se dá muito trabalho ao defini-la: afeição; boas relações; dedicação.

Depois de qualificado nos testes de locução e redacção em 2004, na fracassada tentativa de abertura da Rádio Ecclesia em Benguela, veio o passo mais difícil. O entrevistador apanhou-me desprevenido: Você tem amigos? Respondi que sim. Muitos ou poucos? Acrescentou, para o meu balbuciar, pois nunca me ocorrera tão complexo escrutínio. Disse-lhe que não tinha inimigos, me dava bem com as pessoas, mas que seria natural haver quem não goste de mim. Tem muitos ou poucos amigos? Já não me lembro de como respondi. Bem, mas tê-los muitos é tê-los verdadeiros?

Na mesa-redonda, conceptualizei amizade em três planos: enquanto manifestação de carinho (intrafamiliar); como instituição de cumplicidade e respeito entre pessoas sem laço familiar (relações interpessoais); enquanto boa educação no convívio social (escola, trabalho, vizinhança).

Valores nobres como a solidariedade, o altruísmo e a amizade transcendem fronteiras geográficas, culturais ou linguísticas. Todavia, não podemos ignorar que estes mesmos princípios e gestos se sujeitam à concepção cultural dos fenómenos de sociedade para sociedade.

Em Angola, quer pela diversidade etnolinguística Bantu, quer pela influência ocidental resultante da colonização, é evidente o choque cultural entre as sociedades tradicional e a moderna. Se na cidade é fácil notar a manifestação de amizade intrafamiliar, já no meio rural esta é avaliada apenas pela lealdade. Porém, a complexidade na compreensão deste fenómeno reside no facto de não haver um paradigma, digamos assim, estático. Logo, tradicional nem sempre é necessariamente fora do centro urbano, e sociedade é às vezes apenas uma questão de família e etnia.

Podemos referir que entre os Ovimbundu, a relação entre sogros e genros (vale para sogras e noras) é de grande formalismo, em parte por influência da divisão de papéis com base no género. Atentemos, por exemplo, que não sentam à mesma mesa para comer. Por outro lado, não se imagina que genro e sogra exponham mutuamente suas intimidades, como seria normal para uma família pró-ocidental que se diverte em dia de praia usando apenas roupa interior. Veremos, claro, que as construções sociais devem ser estudadas dentro do seu contexto cultural.

Um dos aspectos levantados prende-se com a degeneração do conceito de amizade na sociedade em geral e sobretudo pelos adolescentes e jovens. A palavra “amigo!” pode servir para designar o chinês que constrói a nossa obra, o vietnamita que fotocopia documentos, o congolês que vende telefones, o libanês que fornece frango, o maliano da cantina. “Amigo” pode também identificar a terceira parte nas relações de promiscuidade, precisamente aquele sujeito que supre os caprichos não custeados pelo namorado. De valor humano, o termo amigo passou a valor comercial.

Mas seriam amizade e interesse antagónicos? Não. Porque quando me torno amigo de alguém, tenho um interesse, o de aprimorar a minha sociabilidade. Quem manifesta carinho na família almeja que um outro membro saiba que se importa. Ao manter boas relações no local de trabalho, meu interesse é ser bem visto dentro do meu sistema de valor. O problema, em meu entender, reside no que a sociedade deve aceitar, ou não, como normal.  

Ao aceitar, ao invés de ensaiar mecanismos de reprovação, que homens adultos “namorassem” com menores de idade, a troco de bens materiais para estas e famílias, o «tal fenómeno catorzinha» despoletado na década de noventa, a sociedade transformava o abuso sexual de menores e a promiscuidade em normas de conduta. Naquela altura, não faltaram argumentos de equiparar o «fenómeno catorzinha» com a prática das sociedades tradicionais, onde as mulheres assumem lares antes dos seus dezoito anos. Quanto a mim, há um detalhe que faz a diferença: no meio rural, não é a troco de bens materiais, até porque a menina (futura esposa) é educada a produzir na lavra.

Os actores sociais, como a igreja, a escola e a imprensa foram chamados a repensar as suas missões, visando contrapor a tendência latente do individualismo/imediatismo em Angola, passando pelo combate à corrupção desde os mais pequenos exemplos à noção de direitos e deveres, uma vez residir no reconhecimento dos próprios erros o pressuposto para o perdão.

Gociante Patissa, Lobito 18 Julho 12
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