Fonte: algures no Facebook |
Amizade, como substantivo, parece ser
tão evidente que o Dicionário Universal (Texto Editora 1999) não se dá muito
trabalho ao defini-la: afeição; boas relações;
dedicação.
Depois de
qualificado nos testes de locução e redacção em 2004, na fracassada tentativa
de abertura da Rádio Ecclesia em Benguela, veio o passo mais difícil. O entrevistador
apanhou-me desprevenido: Você tem amigos?
Respondi que sim. Muitos ou poucos? Acrescentou,
para o meu balbuciar, pois nunca me ocorrera tão complexo escrutínio. Disse-lhe
que não tinha inimigos, me dava bem com as pessoas, mas que seria natural haver
quem não goste de mim. Tem muitos ou poucos amigos? Já não me
lembro de como respondi. Bem, mas tê-los muitos é tê-los verdadeiros?
Na mesa-redonda,
conceptualizei amizade em três planos:
enquanto manifestação de carinho (intrafamiliar); como instituição de cumplicidade
e respeito entre pessoas sem laço familiar (relações interpessoais); enquanto boa
educação no convívio social (escola, trabalho, vizinhança).
Valores nobres
como a solidariedade, o altruísmo e a amizade transcendem fronteiras
geográficas, culturais ou linguísticas. Todavia, não podemos ignorar que estes
mesmos princípios e gestos se sujeitam à concepção cultural dos fenómenos de
sociedade para sociedade.
Em Angola,
quer pela diversidade etnolinguística Bantu, quer pela influência ocidental
resultante da colonização, é evidente o choque cultural entre as
sociedades tradicional e a moderna. Se na cidade é fácil notar a manifestação de
amizade intrafamiliar, já no meio rural esta é avaliada apenas pela lealdade. Porém,
a complexidade na compreensão deste fenómeno reside no facto de não haver um
paradigma, digamos assim, estático. Logo, tradicional nem sempre é necessariamente
fora do centro urbano, e sociedade é às vezes apenas uma questão de família e etnia.
Podemos referir
que entre os Ovimbundu, a relação entre sogros e genros (vale para sogras e
noras) é de grande formalismo, em parte por influência da divisão de papéis com
base no género. Atentemos, por exemplo, que não sentam à mesma mesa para comer.
Por outro lado, não se imagina que genro e sogra exponham mutuamente suas
intimidades, como seria normal para uma família pró-ocidental que se diverte em
dia de praia usando apenas roupa interior. Veremos, claro, que as construções
sociais devem ser estudadas dentro do seu contexto cultural.
Um dos
aspectos levantados prende-se com a degeneração do conceito de amizade na
sociedade em geral e sobretudo pelos adolescentes e jovens. A palavra “amigo!” pode servir para designar o
chinês que constrói a nossa obra, o vietnamita que fotocopia documentos, o
congolês que vende telefones, o libanês que fornece frango, o maliano da
cantina. “Amigo” pode também identificar
a terceira parte nas relações de promiscuidade, precisamente aquele sujeito que
supre os caprichos não custeados pelo namorado. De valor humano, o termo amigo passou a valor comercial.
Mas seriam
amizade e interesse antagónicos? Não. Porque quando me torno amigo de alguém, tenho um interesse, o de aprimorar a minha sociabilidade. Quem manifesta
carinho na família almeja que um outro membro saiba que se importa. Ao manter
boas relações no local de trabalho, meu interesse é ser bem visto dentro do meu
sistema de valor. O problema, em meu entender, reside no que a sociedade deve aceitar,
ou não, como normal.
Ao aceitar,
ao invés de ensaiar mecanismos de reprovação, que homens adultos “namorassem”
com menores de idade, a troco de bens materiais para estas e famílias, o «tal
fenómeno catorzinha» despoletado na década de noventa, a sociedade transformava
o abuso sexual de menores e a promiscuidade em normas de conduta. Naquela altura,
não faltaram argumentos de equiparar o «fenómeno catorzinha» com a prática das
sociedades tradicionais, onde as mulheres assumem lares antes dos seus dezoito
anos. Quanto a mim, há um detalhe que faz a diferença: no meio rural, não é a troco
de bens materiais, até porque a menina (futura esposa) é educada a produzir na
lavra.
Os actores
sociais, como a igreja, a escola e a imprensa foram chamados a repensar as suas
missões, visando contrapor a tendência latente do individualismo/imediatismo em
Angola, passando pelo combate à corrupção desde os mais pequenos exemplos à noção
de direitos e deveres, uma vez residir no reconhecimento dos próprios erros o
pressuposto para o perdão.
Gociante
Patissa, Lobito 18 Julho 12
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