Indicado a reportar as exéquias fúnebres de Raul David pela TPA Benguela juntei algum ânimo e fui tomar contacto com a comissão preparatória criada pelo Governo Provincial (…) O corpo seria transladado da morgue do Hospital central de Benguela à Igreja da Nossa Sra da Nazaré, vulgo Pópulo. Uma capela que remonta aí uns trezentos anos. É um monumento nacional.
A isto se seguiram homenagens no salão nobre da Administração Municipal de Benguela e partida para o cemitério da Camunda.
As dez horas da manhã iniciou o programa. Ainda ressoam-me nos ouvidos as notas da melodia que as colunas postas na ocasião espalhavam sobre o pesado ambiente: «Corre veloz para o monte/ Ó pecador sem tardar/ Busca perdão junto a fonte/ Fonte que está a jorrar… coro: Lá frirás paz dos santos/ Lá findarão os teus prantos…». O indivíduo que cuidava do som se distrai e toca o Compact Disc- CD, solta uma kizomba, ao invés da música sacra e suave que a ocasião impunha. Os cochichos surgiram mais tarde, lá fora «mas que distracção pode ser aquela colocar música errada numa ocasião especial! Miúdos que já nem respeitam a memória dos mais velhos, mas afinal, quem é que se exigia respeito e responsabilidade? Qual Dj’s? que toquem lá nas festas! Coisa séria confiem a adultos».
O amigo dos seus amigos, já não podia sentir o cheiro de perfume tão forte de senhores e senhoras de alta sociedade e suor de gente humilde que a suar, empoeirada da cabeça aos pés ou à sola do sapato viera de várias bandas da Cidade Mãe das Cidades para lhe dizer Adeus. Os ais e soluções seguiam-se. Chegava alguém a cada instante olhava para o esquife, quase não acredita na verdade… im, im, im, ai Ti Raul, porquê nos deixaste? Agora a quem vamos pedir conselhos? Ainda te vimos na televisão outra vez no Cubal que foi ao Cubal parecia que estavas mesmo bem da tua saúde, e agora partes assim sem avisar? Ai, im, im…
Tudo sinónimo do carinho que lhe era prestado, por gente desta terra. Uma terra que ele soube muito bem exaltar nos seus escritos, as makas e alegrias numa simbiose e cronologia ímpares. Quanta conversa travada na privacidade dos quintais, em terras de Ombaka na companhia de confrades como Nunu de Menezes e Goia, ou ao calor emprestado de saraus culturais à noite no largo 1º de Maio!!!
(…)
Arranca o cortejo fúnebre. Sol abrasador. Poeira por cima. A poeira não pulverizava apenas o ambiente; confunde-se também com o próprio asfalto. Motorizadas e viaturas; um forte roncar de motores ouvia-se. Carros de luxo tantos. E ele que em vida pouco primava pelo luxo (…) Na clínica onde estivera internado, apenas fluíram os mais chegados.
Cemitério da Camunda. Os serviçais conduzem o carrinho em que assenta a urna contendo os restos mortais de Raul David. Por instantes, nota-se um silêncio sepulcral, só quebrado pelo barulho que se ouviu do lado direito para quem entra neste campo santo. Um homem que também acompanhava o funeral pisou em falso num montinho de terra e precipitou-se numa cova, aberta. O indivíduo apavorado, levantou e saiu apressado para fora evitando ao máximo ser notado, mas quase nada lhe valeu porque muitos olhares caíram em cima dele. Alguém junto de mim falou em tom baixo e que pude perceber: «Isso é que é entrar numa cova não preparada para si, com o pé direito».
As 3 e meia da tarde do dia 23 de Fevereiro do ano de 2005, a urna desceu a cova (…) Reparte o mesmo reduto com a Poetisa, Alda Lara, falecida em 1962; uma mulher de letras Angolanas que soube exaltar os valores da nossa cultura e relevância da mulher na sociedade. Amigos do alheio profanaram-lhe a campa. Roubaram o mármore. Nem respeito há sequer à memória de quem repousa debaixo da terra.
In Subsídios ao Jornalismo Angolano, pág. 15, Florêncio André "Flores", Lobito-Angola 2008
Foto: Angop
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À parte a crónica...bem escrita como sempre...os meus votos de Festas Felizes da Natal e Ano Novo!
Beijo
Graça
Obrigado, cara Graça, retribuo os nobres votos
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