Na segunda semana, o Chefe da Casa chamou António Veremos para a segunda etapa da
recepção. Esclareceu que a dotação era insuficiente. Cada cabeça recebia cinco quilos de fuba, um de sal, dois de açúcar, três de feijão, litro de óleo, dez tábuas de peixe seco e uma barra de sabão. Por isso, era indispensável ir à rua pedir esmola.
— Aqui, família, somos caçadores de caridade. — disse-lhe o Chefe da Casa.
— Como os calos das muletas já saíram, vais começar comigo.
— Ok, conterra. — concordou Veremos, tomado subitamente pela memória dos tempos de próspero empresário da FBI. Certa vez, e já na defensiva ante o jogral de mendigos à porta da pastelaria, só depois de dizer “não tenho nada!”, notou que ainda nada lhe haviam pedido. Às vezes, a gente foge a miséria, não sabe porquê, mas evita cruzar com ela pelas avenidas. E ela caminha e se perpetua, como a própria indiferença.
— Então, mas os que têm ofício já tentaram procurar emprego?
— Ó família, a bicha do emprego é longa, quase não anda, e o mutilado se cansa de tanto tempo de pé numa só perna. — Por isso, parente, a qualquer gajo que me pedisse opinião, sei bem o que diria. E é há muito que o sei: um “NÃO!”, que a guerra é a maior porcaria.
António Veremos revelava-se desajeitado com a caça de esmola. Dir-se-ia que era muito distraído, levando, por consequência, o dobro do tempo habitual para aprender a bumbar sem supervisão. Uma vez superada esta etapa, surgia outra tensão entre o aprendiz e o instrutor. Veremos abandonava frequentemente a labuta antes do pôr-do-sol, que era a fértil altura, quando os funcionários voltavam aos seus lares para guardar a noite. O Chefe acreditava que a crise seria passageira, mas estava enganado.
— Ó família, o quê que se passa contigo afinal?
— Fiquei cansado, essa merda de muletas dão cabo dum gajo…
— Desculpa, mas isso é mentira! Tu achas que não sou mutilado, também não passei pelo que estás a passar?! Tu não és criança, o trabalho dignifica o homem, pá!
Entretanto, António Veremos não mudava. Já não era apenas a questão de abandonar cedo o posto de esmola, passou mesmo a não pôr lá os pés. Tornou-se algo misterioso. Saía de manhã e regressava à noitinha.
Cansado dos raspanetes do Chefe da Casa, Veremos contou-lhe a história de Rita, sua fulminante paixão, que deixou de ver na viagem do acidente que lhe roubou a perna. Estaria morta? Teria recebido alta e regressado a Luanda? Era a procurá-la que passava o dia espreitando em salas hospitalares e postos médicos. O relato veio a terminar num ambiente gélido face à reacção do companheiro:
— Porra, pá! Deixas de bumbar para ir atrás duma puta, que não se importou contigo?! Se é sexo, há mulher na casa, mas com kumbú na mão.
— Eh pá!, calma ali! Primeiro, puta é a tua avó! Segundo, você não sabe se ela está morta ou não! Quem és tu, ó cara do caralho?!
— Eu te recebi pensando que és homem! Não posso é sustentar um preguiçoso, que se comporta como adolescente e não produz…
— Chefe, vais p’ra’puta que te pariu! Eu também já fui alguém, ouviste?! Nem tu nem ninguém decide, se procuro a minha mulher ou não!
O Chefe da Casa ainda foi a tempo de dizer que o passado só valeu a pena se não nos impede de continuar a viver. Mas, será que foi ouvido?
Veremos recolheu os haveres e instalou-se nos escombros do Mercado. Solitário, mas independente, como gostava, como sempre viveu. Continuou procurando pela mulher, mas esbarrava sempre na mesma pergunta: “Rita de quê?”. E, infelizmente, desconhecia o sobrenome. Passou a esconder-se no copo, bebendo muito, e quase sempre, comendo pouco, e de vez em quando. E não demorou muito para ser acometido por uma tuberculose.
Achando terreno fértil no sistema imunológico de Veremos, a doença deixou-o assustadoramente escanzelado. A dada altura, ele cheirava a morte. E convenceu-se de ter somente uma saída para continuar a viver. Então, regressou à Casa de Passagem, por menos que gostasse da ideia de ser rejeitado pela ex-família. Ao vê-lo chegar, o Chefe, que cuidava do jardim no canteiro do alçado principal, largou a enxada, abandonou o que fazia e estendeu o abraço:
— Meu, camarada! Quê que está a te matar?
— Parente, desculpa, errei…!
Gociante Patissa, União dos Escritores Angolanos. 2013, Luanda, Angola
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