Apresentou-se uma mulher levantada do chão, metro e setenta, olhos grandes e incisivos, ar categórico. Traje
tradicional africano com influência congolesa. Saltava à vista o tique nervoso que a fazia levar constantemente a mão ao queixo. Se um dia houve ali algum parente de barba coçável, isso, não sei dizer.
O calcanhar permanecia parcialmente tinto de pó, típico de quem teve de galgar o quilómetro e meio de terra batida entre a paragem de táxis mais próxima e a Procuradoria, aquele edifício concebido sem paz de espírito. Pela voz estava difícil de se captar o timbre, dada a constipação, de si já frequente, possivelmente fruto da vida que a atirou para uma estrutura inacabada partilhada por um agregado pluriforme: pessoas, patos, gatos, dois cães, cimento, cal e demais ferramentas.
O peso da aflição dava-se mesmo a ver pelo rosto suado, como se o amoníaco do próprio organismo lhe quisesse renovar os quarenta e tal natais que o bilhete de identidade indicava. Contudo, enganava-se Kasova se pensasse ser a única madrugadora. Também as barreiras ali moravam dia e noite a cumprir o seu papel.
— Eu só quero falar com o procurador, mais nada!!!
— Ó senhora! Eu já falei. O procurador está ocupado!
— AFINAL QUAL É O ASSUNTO COM ESTA CIDADÃ, Ó MEU COLEGA CATALOGADOR?
— Isso até, ó doutor!, é um assunto que na qual ela está aqui remitente...
— NÃO É REMITENTE, PÁ! É RENITENTE. “QUE NA QUAL”?! ISSO TAMBÉM É PORTUGUÊS DE ONDE? VÁ, PROSSIGA!
— Já há umas semanas que vem aqui, sem solicitar audiência sem nada, vestida como está, esses lenços na cabeça, esses panos dela. Quer dizer, sem decoro. Ainda ao menos se alisasse o cabelo ou já só uma peruca, né?... E quer falar logo com sua excelência o senhor procurador, assim nada apresentável como está. Não é mau precedente, meu chefe?...
— MAS A SENHORA ENTÃO, ASSIM, COMO É QUE É?!
— O camarada é que é o senhor procurador?
— NÃO. SOU ADMINISTRATIVO SÉNIOR COM LICENCIATURA EM DIREITO, PÓS-GRADUAÇÃO EM CRIMINALÍSTICA E POR ACASO TENHO PLANOS DE FAZER UM DOUTORAMEN...
— Já entendi. Pronto. Mas é assim: meu irmão, eu vou pedir- lhe desculpas, não perca o seu rico tempo. O meu assunto é com o procurador. Ele afinal está ou não está?
— A SENHORA QUE FAÇA UMA EXPOSIÇÃO, POR ESCRITO, ESTÁ BEM? HÁ CÁ TRÂMITES! NÃO É SÓ SAIR DE CASA E, PRONTO, DEU NA CABEÇA, AH, LÁ VOU EU FALAR COM O PROCURADOR...
— Mas eu não venho brincar, camarada! Também sou mulher de homem, durmo atrás de alguém como o senhor, ouviu bem?!
— QUAL É O ASSUNTO, AFINAL?
— O assunto é justiça. Não quero outra coisa! Repare uma coisa, meu caro. Um homem quase violou a nossa filha, espancou a menina. Aí fizemos o quê? Metemos o caso na justiça. Foi julgado e condenado a três anos. Ficamos alegres mas, qual foi a nossa surpresa? Já anda por aí livre feito um rio. Ninguém só se preocupou em consultar a nossa opinião. Então o ofendido é um e quem perdoa é o outro?
— DEVE SER DA AMNISTIA, UM INSTRUMENTO MAGNÂNIMO DA MAIS ALTA MAGISTRATU...
— Mas é só para alguns?
— COMO ASSIM? ISSO É PAULATINO, MINHA SENHORA. É DE LEI...
— Mas o meu marido, que não se conformou com a liberdade do agressor da filha, pegou nele, lhe enfiou dois socos da boca e bons pontapés no meio das pernas. A justiça vai-lhe prender, por cima da razão dele, prometem que vão lhe condenar para dois anos e não tem amnistia?!
— ISSO NÃO É BEM ASSIM...
— E se não é bem assim, é como então essa justiça?
Gociante Patissa, in O HOMEM QUE PLANTAVA AVES, 2018. Editora Acácias, Luanda, Angola.
Edição brasileira disponível no site da Editora Penalux https://www.editorapenalux.com.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=186
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