No limbo entre ontem e hoje fui-me deitar ardendo, de crónica. E lamentavelmente consegui adormecer o mundo
sobre os ombros, congelando o fio. Digo lamentável, porque vi nisso de dormir ante o desassossego o soar do alarme, mais uma vez a idade. Caminhamos para velhos e como disse o outro algures, aos poucos já não conseguimos ser metade do homem que até há bem pouco tempo fomos.
A escrita e o sono praticamente nunca em mim dormiram na mesma cama. O fluxo imaginativo, traiçoeiro, tinha essa mania de jorrar justo no momento em que o sono se fazia à pista dos lençóis. E assim ficava eu a debater-me. Ou dormia e perdia a ideia criativa, ou escrevia noite a dentro e bocejava o dia inteiro atrás do pão, arrebatado que fui pelo mundo do emprego ainda aos catorze anos.
Deixei a casa de uma irmã onde jantei pouco antes da meia noite e na minha cabeça continuou a trilha linda e triste dedicada a Che Guevara. A imagem do homem convicto tombando com o resto já há muito rendido à sua volta ilustrava bem os nossos tempos, tempos do tombar dos bravos da linha da frente por uma causa sem prazo, a densa e fria noite escura que teima em adiar o airoso amputando sonhos, o agoirento traço das notícias, a impotência dos cientistas, o arrojo dos líderes. O nosso mundo, nos dias que correm, é a fotografia de uma revolução perdida um pouco a cada dia. Hasta siempre, querido século 21. Ah, já agora enquanto posso, reivindico o meu lugar nas gerações autorizadas a dar o testemunho de sobreviventes do pior de uma guerrilha ali pela década de 80, sem esquecer, pois claro, que a década de 90 nos enfiou goela abaixo goles com raiz de mamoeiro e gotas de creolina, era cólera.
Só que na outra guerrilha, a das kalash, as crianças tinham o dorso das mães para escudo, e essa que nos assola leva primeiro as mães. Na outra safavam-se ao menos os refugiados para o ocidente, a actual é a primeira a chegar não importa aonde. Na outra guerrilha era plantar esperanças na voz do governante, e essa elimina primeiro o governante. Combalidos, nós o capim, hidratámos alento via poros do médico, só que a guerrilha de hoje mata antes os tais médicos. Na outra, aliás em todas as guerras, os aliados são o zénite, nessa actual só há um lado, o da derrota global. Na outra, como em todas as guerras, há tréguas e, ainda mais inviolável, uma ordem mundial. Na guerra da Covid a ordem mundial é o paiol de certezas fugidias, o disse que não disse chamado OMS. Hasta siempre, querido século 21!
Gociante Patissa | Benguela, 22 Outubro 2020 | www.angodebates.blogspot.com
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