A vivência do homem resumia-se em umas
quantas ruas, a da escola, a do serviço, a das refeições em casa da mãe. Esta
última saía-lhe agridoce, por serpentear entre o hospital e a casa mortuária, e
com isso o embaraço em tomar por rotina o contacto com pesares alheios –
confundindo-se a origem de pesadelos esporádicos, entre o caminho ou algum
prato indigesto.
O ciclo do dia fechava-se faltando poucas
horas para o outro. Visto do seu relevo, tudo o resto ficava a norte, noutra
margem do século. No dia seguinte, estava outra vez a vida a imitar-se a si
própria, nos mesmos caminhos e desencontros. Sorte era não ter de quem se
esconder, já que “ofeka yinene ño nda okasi mo lesunga” (o país só
é grande se levas a vida com justiça).
Numa qualquer noite, ia ele a conduzir
devagarinho, o que bem podia ser atribuído à digestão, se não à chatice que era
ir para a cama com a bomba de embraiagem na cabeça, agendada que estava a
oficina para as primeiras horas da manhã. Quando a amizade com o mecânico
aumenta, está na hora de nos desfazermos do carro.
Sobre a rotunda do Kulinji, estava uma
mulher de dedo em riste, trajo de festa em dia normal de serviço. Não devia ter
mais de 25 anos. Parecia ter pressa. Não parecia, tinha mesmo! O homem pára,
ela ocupa de imediato o assento do “morto”. Obrigada, moço! Vamos, diz, como se
estivesse a ser perseguida. São dez da noite. A aflição da rapariga, revelada
em fracção de segundos, deixa o homem perplexo, pois contrastava com a harmonia
que se auferia do lugar.
De onde vens? Aonde vais? Indaga, como que
a ganhar dimensão real da situação em que acabava envolvido. Fui atacada há
pouco por um maluco. Fomos se esconder numa casa, mas mesmo assim. Um olhar dos
pés à cabeça é inevitável. Tudo muito aprumado, para quem andou a correr.
Maluco, como? Desses sujos, ou alguém que se portava mal? Maluco mesmo! Sorte
foi a polícia. Pulamos o muro e fugimos. Meu Deus! Nem sei onde está a minha
amiga… O homem disfarça a estranheza, pois os dois agentes na rotunda eram
reguladores de trânsito, quando a unidade de anti-motins ficava perto dali. Que
alvoroço seria tão invisível?
Quanto mais ele tentasse entender o
relato, mais ela multiplicava os tentáculos. Melhor era calar, ouvir, ou dizer
fragmentos apenas. Expressava-se razoavelmente, falava era demais, tornando a
conversa em manancial de novos começos, poucos fins à vista. Mas compensava.
Era linda. Perfume à medida. Curva à direita!, ordenou. Os faróis não ganhavam
para a escuridão em bairro emergente a sul de Benguela. Doses de insegurança à
mistura. A marcha não permitia mais de dez quilómetros horários, ou não fosse
idoso o carro. Ultrapassaste, a entrada é aquela, repreende, duas ruas adiante,
como se o homem já conhecesse a casa.
Sabes, eu sofro na minha irmã. Meu cunhado
é português. Tenho que fazer o trabalho de casa. As crianças são chatas!
Desculpa, isso não se fala, né?! Tens filhos? Não, responde o homem, as
camisinhas não deixaram. Só rezo para ter emprego, entrar para a faculdade,
continua ela. Já tentaste concurso público na educação? Ainda não acabei o
médio, será que aceitam?
Ia sugerir um passeio, mas conteve-se,
ouvindo a voz interior. A noite saberia melhor o que fazer com a mulher. Bem,
estás entregue, estou com sono. Até mais! Obrigada! Qual é mesmo o nome do
moço? Digo-te se nos voltarmos a ver.
Gociante Patissa, Aeroporto Internacional
da Catumbela, 28 Dezembro 2012
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