segunda-feira, 11 de junho de 2012

Crónica: Os semáforos


A luz do dia acabava de entregar a primeira manhã ao grupo de visitantes, com alegre promessa de chuvisco. Começava uma jornada de sete dias na cidade de Portland, do Estado de Oregon, que dista aproximadamente três mil quilómetros e meio de Washington, DC. 

 O clima, longe embora do tropical, saía-se menos gélido do que o da paragem anterior. De avião, foram cinco horas ininterruptas, somadas à disparidade de fusos horários, levando o dia a engordar para vinte e sete horas. Fosse o que fosse, era preferível ao inverno de Washington, DC. Mas quem disse que era linear o mito americano?! Talvez faça sentido que, ao contrário do que um dia critiquei, as leis de um mesmo país variem de estado para estado, como se uns fossem mais americanos do que outros. Bem, mas justo seria, por exemplo, que Miami, tão quente e festivo, se guiasse pelas mesmas bitolas de outros lugares mais fleumáticos?

O grupo viria a seguir para Salt Lake, estado de Utah, e culminar a turné em Miami, Florida. Portland é de todas a mais inspiradora. Como se já fosse pouco conseguir juntar em Janeiro um pouco de inverno com outro pouco de verão, tem ainda paisagem montanhosa e um rio que passa pela cidade, esta, que combina com perfeição o bucólico com o cosmopolita. É certo que América, até mesmo como país, é vastidão demais para caber numa crónica.

Dois anos depois, dou-me a ser transportado pelos semáforos acabados de montar na cidade de Benguela para as memórias de Portland, suas paisagens, os inevitáveis choques culturais, enfim, tudo o que de maravilhoso se ganha nesse renascer que é viajar.

Estava anteontem a jantar no “Tudo na Brasa”, escolhendo a parte a céu aberto para fotografar com a mente a vida que caminha pelo calçadão. Lá dentro, a esmagadora maioria de clientes, portugueses certamente, angustiava-se pela derrota no Euro diante da Alemanha. Na estrada, alguns automobilistas e motociclistas marimbam-se para as regras do semáforo. Nenhum regulador de trânsito por perto para o correctivo. De errar em errar, não faltam peões que se metem a atravessar a estrada quando o sinal luminoso não lhes é favorável. Parece que custa esperar. Mas quanto tempo dura a luz até chegar a nossa vez? Depende, que em Portland pode durar o ano todo.

Tinham-se passado vários minutos sem que o semáforo se lembrasse de acender verde para nós, os peões, atravessarmos. Avariado não parecia estar. Os carros circulavam, na prioridade que o verde lhes confirmava, e nós ali, ansiosamente impedidos de seguir a caminhada. Até que surgiu o Óscar Morales, um colombiano do nosso grupo e já frequentador dos EUA, a desvendar o mistério. Era preciso premirmos um discreto botão no caule que sustém um holofote ali mesmo na passadeira. Eis que, instantes depois, acendia a luz da nossa vez. Sorrimos de alegria, superada a ignorância. Quer dizer, enquanto não houver peões no cruzamento, os veículos não têm por que parar.

Tal fórmula, que veio obviamente a servir em Salt Lake, só reforçou a minha tese. A segurança rodoviária é essencialmente uma questão de comunicação. A tecnologia pode lá estar e ser funcional, mas não passa de complemento; determinante mesmo é o toque humano.

O semáforo como metáfora serve para outros sectores da vida. Lembro-me de como, em ameno debate, uma amiga canadiana dizia que não gostaria de fazer filhos em Angola, por entender que o nível de moralidade é baixo. Contra-argumentei então, conhecendo a sua condição económica, que podia matricular os filhos nas mais reputadas escolas. E ela retorquiu que a escola em si não resolvia, que a linguagem e outras discrepâncias estavam na interacção com outras crianças.

De facto, os semáforos, como as escolas, dependem da comunidade e do nível de cidadania desta.

Gociante Patissa, Benguela, 11 de Junho de 2012
Share:

2 Deixe o seu comentário:

Anónimo disse...

HUM ISSO, É PARA POUCOS....

Angola Debates e Ideias- G. Patissa disse...

Viagem de intercâmbio aos Estados Unidos da América a convite do Departamento de Estado num programa denominado International Visitors Leadership Program, Janeiro 2010, através da Embaixada Americana.

A Voz do Olho Podcast

[áudio]: Académicos Gociante Patissa e Lubuatu discutem Literatura Oral na Rádio Cultura Angola 2022

TV-ANGODEBATES (novidades 2022)

Puxa Palavra com João Carrascoza e Gociante Patissa (escritores) Brasil e Angola

MAAN - Textualidades com o escritor angolano Gociante Patissa

Gociante Patissa improvisando "Tchiungue", de Joaquim Viola, clássico da língua umbundu

Escritor angolano GOCIANTE PATISSA entrevistado em língua UMBUNDU na TV estatal 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre AUTARQUIAS em língua Umbundu, TPA 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre O VALOR DO PROVÉRBIO em língua Umbundu, TPA 2019

Lançamento Luanda O HOMEM QUE PLANTAVA AVES, livro contos Gociante Patissa, Embaixada Portugal2019

Voz da América: Angola do oportunismo’’ e riqueza do campo retratadas em livro de contos

Lançamento em Benguela livro O HOMEM QUE PLANTAVA AVES de Gociante Patissa TPA 2018

Vídeo | escritor Gociante Patissa na 2ª FLIPELÓ 2018, Brasil. Entrevista pelo poeta Salgado Maranhão

Vídeo | Sexto Sentido TV Zimbo com o escritor Gociante Patissa, 2015

Vídeo | Gociante Patissa fala Umbundu no final da entrevista à TV Zimbo programa Fair Play 2014

Vídeo | Entrevista no programa Hora Quente, TPA2, com o escritor Gociante Patissa

Vídeo | Lançamento do livro A ÚLTIMA OUVINTE,2010

Vídeo | Gociante Patissa entrevistado pela TPA sobre Consulado do Vazio, 2009

Publicações arquivadas