segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Pensar como zungueira

Manhã de sol envergonhado, na periferia. Poucos meses faltam para o fim d’ano, numa altura em que o inverno dá lugar ao verão. De todos os cantos cresce o frenesim por um dia longo pela frente, em matérias de ganha-pão. Três mulheres distanciam-se cada vez mais da sanzala numa direcção ainda difícil de adivinhar para o observador por quem passam. “Bom dia, mano!”, saúdam as três mulheres, como mandam os bons costumes.

Uma delas leva às costas um bebé, que, tal como o observador, ignora positivamente se o passo semi-apressado é para findar apenas na paragem de Hiaces e autocarros, a dezena de metros, ou se a meta provisória é a estação de Comboio, a um quilómetro. Seja como for, o que é certo mesmo é que o mediático "Afrobsaquete" passa bem a leste das suas preocupações.

Vão na casa dos 24 anos em média, isso dependendo do ângulo de observação. O timbre de voz denuncia uma juventude corrompida por uma velhice existencial, enquanto suas vestes denunciam a coabitação entre a idade cronológica e a responsabilidade social no contexto peri-urbano. Ou seja, muitas vezes, não se é adulto só pelo número de vezes que se “viveu” o natal, mas, isso sim, a partir de quando se deu à luz. Não importa se em casa dos pais ou em “beco” próprio.

“Zungueira ou lavador de carros, não é de se ter vergonha”, o pensamento da música conjunta dos grupos de RAP angolano SSP e Afroman, na música “O vencedor”, é posto à prova:

– Zungueira te sustenta, diz uma.

– Mulher Kunanga é prejudicial, denuncia a segunda.

– Ele é burro, não sabe que enquanto sai, a mulher dele entra com outro homem em casa! – condena a terceira, trazendo à luz o motivo da conversa.

Já agora com o fio da conversa em posse, o observador, que não passa de simples figurante nesta cena flagrante da vida real, segue discreto os passos das jovens senhoras, para perceber ainda melhor como pensam as zungueiras. A curiosidade reside não tanto em “quem é ele?”, mas principalmente no “que se vende?”. Não levavam à cabeça baldes brancos, logo não podiam ser vendedoras de yogurte caseiro. Zungueiras de quê, então?

– Eu saio de manhã p’ra fazer o meu dinheiro. No fim do mês ainda posso apresentar uma quantia boa na minha pasta – insiste ainda a primeira.

– Ele não sabe. Pensa que Zungueira é mulher qualquer – dizia s segunda.

– Uma mulher é aquela que não se deixa!

Lá vão os tempos em que o ganha-pão era responsabilidade só dos homens, quando ninguém engravidava antes de formar seu próprio lar. Mas como é que a coisa mudou, então? Uns acusam as mulheres de facilitar, entretanto outros vêm na extrema natalidade uma questão de “patriotismo”. Convém explicar: se o país tem mais mulheres do que homens, é, matematicamente, “ético” os “poucos” que sobram fazerem a vez dos outros tombados pela liberdade histórica.

E a sobrevivência passa a ser uma questão de equilíbrio de género, onde a mulher carrega tudo: carrega a criança às costas, carrega o sol na testa quando sai e regressa com ele “nos cornos” à noitinha, trazendo os mantimentos para o dia – porque para amanhã, vê-se amanhã! Carrega, quando muito, a ingratidão do marido, que já está com os copos. Depois carrega mais ainda…

Pois, carrega as lamentações das crianças, as quais deverá aturar até à hora da novela, depois da qual virá a ordem do companheiro que “já quer fazer”, sem se lembrar que a esposa não teve tempo sequer de tomar um banho e preparar a mente para mais um exercício sagrado, muito menos se está no período fértil ou não. “Em minha mulher mando eu”, pensará com machismo o ignorante.

Conhecem a cidade não pelos monumentos, mas em função dos clientes que se familiarizaram com os seus pregões. Levam os supermercados ao portão do habitante preguiçoso, conhecendo pela necessidade a cidade de lés-a-lés. São o rosto visível do fenómeno que lançou a mulher para as ruas nos centros urbanos, no seu dever de produzir para sustentar a sociedade - sociedade essa, que a condenará amanhã por não ter ido à escola e não participar na vida política.

Gociante Patissa, Agosto 2007

Share:

1 Deixe o seu comentário:

Anónimo disse...

infelizmente só li hoje, mas nao deixa de ser impactante, elas contribuem para a sociedade que as condena, sao elas que facilitam-nos a entrega dos produtos a prota de nossas casas, muitas vezes ignoradas, taxadas... Pois pouco se dá imporntancia a elas.

A Voz do Olho Podcast

[áudio]: Académicos Gociante Patissa e Lubuatu discutem Literatura Oral na Rádio Cultura Angola 2022

TV-ANGODEBATES (novidades 2022)

Puxa Palavra com João Carrascoza e Gociante Patissa (escritores) Brasil e Angola

MAAN - Textualidades com o escritor angolano Gociante Patissa

Gociante Patissa improvisando "Tchiungue", de Joaquim Viola, clássico da língua umbundu

Escritor angolano GOCIANTE PATISSA entrevistado em língua UMBUNDU na TV estatal 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre AUTARQUIAS em língua Umbundu, TPA 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre O VALOR DO PROVÉRBIO em língua Umbundu, TPA 2019

Lançamento Luanda O HOMEM QUE PLANTAVA AVES, livro contos Gociante Patissa, Embaixada Portugal2019

Voz da América: Angola do oportunismo’’ e riqueza do campo retratadas em livro de contos

Lançamento em Benguela livro O HOMEM QUE PLANTAVA AVES de Gociante Patissa TPA 2018

Vídeo | escritor Gociante Patissa na 2ª FLIPELÓ 2018, Brasil. Entrevista pelo poeta Salgado Maranhão

Vídeo | Sexto Sentido TV Zimbo com o escritor Gociante Patissa, 2015

Vídeo | Gociante Patissa fala Umbundu no final da entrevista à TV Zimbo programa Fair Play 2014

Vídeo | Entrevista no programa Hora Quente, TPA2, com o escritor Gociante Patissa

Vídeo | Lançamento do livro A ÚLTIMA OUVINTE,2010

Vídeo | Gociante Patissa entrevistado pela TPA sobre Consulado do Vazio, 2009

Publicações arquivadas