domingo, 8 de agosto de 2021

Crónica | Chamou-se Paizinho, não carinhosamente. A ironia de um sobrevivente assassinado

Escrevo esta crónica na cama como quem se agarra à ilusão de embrulhar o dia capaz de afrontar a impotência que nos avacalha desde as primeiras do dia de sábado que ainda é hoje. É o máximo que posso nesse misto de choque e revolta instalado por tempo indefinido, até que se esclareça o guião da tragédia que desenhou a prematura partida, literalmente partida, do protector físico de 38 anos que atendia pelo nome de Víctor Isaac Paulino, (não carinhosamente) conhecido por Paizinho. Explico.

 

Quando em 1983, anos do partido único e guerra civil pós-independência, o interior ia completamente vulnerável aos ataques da guerrilha da UNITA/FALA que buscava reforço logístico e desmoralizar a administração do Estado (MPLA/FAPLA/ODP), o casal Isaac Paulino e Balbina (Luvina), conhecido pelo corpo esbelto e cabelos lisos, ganhava o primeiro rapaz de uma escadinha que ia na quarta contagem. Logo correram as artérias da comuna do Monte Belo para anunciar a homenagem a Victor Manuel Patissa, filho de Josefina Kanjala, irmã do pai de Isaac, Kalupeto. O menino foi sempre Victor até um acontecimento torná-lo improcedente. Sobre isso vamos devagar, que também já nada mais se salva. O interessado está lá na morgue, surdo ao pranto da viúva e a prole de cinco, né? Voltemos à memória.

 

Em meados da década de 1980, que eu chamaria a era dos primos, o que vigorou até à proclamação da abertura de mercado, Isaac Paulino era o pseudónimo comercial de Victor Manuel Patissa na comuna piscatória da Equimina, ao tempo em que os governantes não deviam ter negócios (na verdade todos procuravam precariamente empreender, bastava que por interposta titularidade). Com o cessar fogo alcançado em Bicesse em 1991 e a liberdade de mercado, a euforia toma conta, só se fala em regressar ao kimbo e recuperar as terras. Isaac nessa altura já só existia na recordação, a morte natural o havia arrebatado poucos anos antes, deixando o Victor criança sob tutela de Victor original.

 

Em 1992, de volta ao kimbo abandonado havia sete anos, Victor Manuel Patissa movimenta duas de suas esposas para o cultivo, acolhidas pela cunhada Adelina Mbali, que resistira à guerra ali. A coabitação entre as partes beligerantes era mais táctica do que pacífica, quer o governo, quer  a UNITA ostentavam exércitos. O nosso magro projecto agrícola complementava-se com pequenos negócios, fuba de milho em canecas e petróleo iluminante. Sobrava para mim, claro, essa parte, 13 anos nos cornos, noites de breu e farras. A parte boa é que foi no kimbo que aprendi a dançar um-dois-um.

 

Certa vez acordou-nos o apelo épico para ir à CPPA (comando provincial da polícia de Angola). Parecia cena arrancada dos filmes. Eram já nove da manhã e não havia sinal da comissão (conjunta ou mista?) de verificação. Pelo menos quinze agentes estavam rendidos por tropa da UNITA, farda verde oliva justinha à pele. Ao comandante fora aplicada uma careca. A tropa de assalto vinha de Amenlã. O incidente terminaria com a heróica  intervenção do capitão Tchakusanga, da 7.ª Região Militar das FALA, o qual de passagem para o Balombo exortou as partes à reconciliação. E tudo acabou em bem. Em nós ficou sempre a convicção de que a paz de 1991 resultara da derrota militar do governo. 

 

Por conta dessa volatilidade registada a faltarem três meses para as primeiras eleições gerais, o meu pai, pelo acesso privilegiado à informação político-militar, ordenou partirmos de volta ao litoral, no ar uma sensação de fuga pela segunda vez. Uma das precauções para os que ficavam foi omitir o nome de Victor, não fosse o menino sofrer purga. Foi assim que Victor Isaac Paulino ficou Paizinho.

 

Ironia, é esse Paizinho sobrevivente ileso das guerras e cirurgias de pedra nos rins que morre hoje nas mãos cruéis de assassinos ainda desconhecidos, no bairro que em parte lhe fez homem, Santa Cruz.

 

Gociante Patissa |Lobito, 07 Agosto 2021 | www.angodebates.blogspot.com


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