quarta-feira, 29 de abril de 2020
terça-feira, 28 de abril de 2020
Conto | A ESTRELA QUE NÃO VOLTEI A TER
Nunca mais quis ou pude ter cães. Aos que amei ao longo destes anos, foi por afinidade. A
única cadelinha que verdadeiramente me pertenceu chamou-se Estrela. O brilho dos olhos dela evidenciava suficientemente a beleza das quatro patas, parecendo-se mesmo, vista de frente, com estrelas que as crianças guardam no céu para servirem de brinquedo em noites de calor. Era fêmea, criança, baixinha, acastanhada, brincalhona, obediente.
Ganhara-a de um primo que dela se queria livrar, no que se pode considerar um dos mais memoráveis passeios da adolescência, com a diferença de o destino ter sido apenas o bairro da Kanata, duas horas a pé de casa. Tinha catorze anos, que pareciam menos, dada a pouca altura que me era característica até aos dezanove anos e o curso de pedreiro no IED[1].
O que disse é uma verdade passível de desiludir o Stick, cão lá da casa de minha mãe, que não faz outra coisa quando me vê, a não ser pular e sujar-me a roupa toda. Só mesmo o Stick, com aquele carinho (sobejo mas sincero) de saudades. Por sorte, os cães não sabem ler —ou ao menos, como ironizaria certa poetisa, não todos.
Como já confessei numa crónica parida algures em 2010, tive infortúnio com cães, um pouco por culpa da noite. O sangue sob a roda confirmava. Era o cão da vizinha, que eventualmente procurava aconchego nos restos do calor do motor.
— Matou, assacou em baixo da roda!!! — acusavam as crianças, como se não se tivessem distraído, elas também, pelo brotar do luar e as brincadeiras de quem chama o apetite para jantar.
Nada mais havia a fazer, além de seguir para a escola,
enquanto a sobrinha e outros jovens da casa ao lado cuidavam do resto. É que já levávamos uns quarenta minutos de atraso. Ficava para o fim das aulas a conversa com a ama do Bruninho, como era carinhosamente chamado (no entanto tratado como a maioria dos considerados rafeiros, protegidos pelo acaso e co-alimentados pela rua).
enquanto a sobrinha e outros jovens da casa ao lado cuidavam do resto. É que já levávamos uns quarenta minutos de atraso. Ficava para o fim das aulas a conversa com a ama do Bruninho, como era carinhosamente chamado (no entanto tratado como a maioria dos considerados rafeiros, protegidos pelo acaso e co-alimentados pela rua).
— Assim o tio não vai na cadeia? — indagava Nair, sobrinha de cinco anos. E logo cuidei de esclarecer que o tio não atropelou de propósito e que, como devia ser, lugar do cão era em casa, não na estrada; que o tio não iria responder, por não se tratar de vida humana.
Outra questão soou-me à condenação pública:
— O tio também já não gostava do Bruninho, né?! — A resposta objectiva foi afirmativa, pois ela me vira recorrentes vezes a enxotá-lo, sem que isso significasse motivo para o que aconteceu. São as tais analogias pueris, justificáveis por isso mesmo.
Havia um cão no quintal em que em tempos fui morar, nessa busca solteira de anexo módico, que me recordava o Bruninho. Tinha cor preta, malcheiroso e com a mesma vivência. No outro dia, dei por ele a sair, envergonhado, da minha cozinha, onde achara saco de lixo com restos. Não tive forças para o condenar — não que assumisse o desleixo de ter deixado a porta aberta, mas por o compreender de certo modo.
Numa bela semana dos dois anos do meu convívio parcial com aquela família, constatei uma situação de afecto colectivo pelo cão, talvez a maior mesmo. Tinha sido atropelado, quebrando uma pata e causando ferimento à outra. A sangrar desesperadamente, era de um silêncio inusitado. Nem só um chiado. É como aquele mito dos humanos que diz que quando se chora muito, é porque o choque é mínimo. Umas vezes deitado no quintal, outras no corredor do beco que dá para a casa, o cão vivia uma pacatez moribunda. E não era para menos, conforme se veio a ver. A pata engessada infestara-se, a outra fedia que nem uma coisa doida, rompendo-se algo que me parecia ser sutura lá do veterinário.
Quando acordei, algumas manhãs depois, vi-o num estertor que me fez pensar por uns instantes se uma eutanásia não seria a mais assertiva saída para aquele ser impotentemente vivo. Saí para matabichar. De regresso, os jovens da casa escovavam do chão a porcaria do doente. Para onde fora o cão, nem quis perguntar. Desconfio que terão feito a ele o mesmo que à minha Estrela, comparação de todo o modo injusta, quiçá, se tivermos em conta que a minha cadelinha não chegou a adoecer, mas fora abatida juntamente com dois outros cães adultos de casa... para agradar um vizinho que se queixara de roubo.
Se calhar, o erro foi meu, por querer ter uma estrela para mim, ainda tão pequeno no mundo dos adultos, quando elas foram feitas para as termos à distância, no palco ou no céu.
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segunda-feira, 27 de abril de 2020
Na ausência do girabola, está instalado o clubismo no regurgitar ao domingo via redes sociais de uma contenda bipolar. O vencedor não é nenhum dos rivais nem a cidadania virtual que reage fracturada. É Apenas a TV Zimbo nos cifrões com a publicidade resultante da audiência que você lhe confere. Velho guião, pouca memória. Mudar de canal é acto político
quarta-feira, 22 de abril de 2020
Diário | ME RECONHECESTE SÓ PORQUÊ, SE O OUTRO ESTÁ A USAR MÁSCARA?
(I)
"SÔ AGENTE! SÔ AGENTE!!! Responde só já o outro, meu irmão. Não fica mais ignorante…”
“Mas que atrevimento é esse?! Tu conheces as minhas habilitações? Vai chamar ignorante ao teu pai, faço-me entender?!"
“Mas, ó chefe, até falei com boas maneiras. É de se ofender mais dos pais?..."
“Você tem noção das suas palavras?”
“Mas assim então, (nessa vida é bom perguntar para aprender, né?) onde é que me expressei mal? Só falei não me ignora mais, faz favor..."
“Não foi isso que você disse! Falaste ‘Não fica mais ignorante’”… Quer dizer, viste que é polícia, é porque não estudou, né?!”
“Oh, afinal o ignorante e aquele que ignora não é a mesma coisa? Vai-me desculpar, sô agente!"
“Aprendam bem o português, Ok?!”
“O português é traiçoeiro. Está a ver só, meu irmão? A pessoa ia só mesmo levar chapadas à toa, é no tal funeral do Camões que já não fomos…”
“Mas que atrevimento é esse?! Tu conheces as minhas habilitações? Vai chamar ignorante ao teu pai, faço-me entender?!"
“Mas, ó chefe, até falei com boas maneiras. É de se ofender mais dos pais?..."
“Você tem noção das suas palavras?”
“Mas assim então, (nessa vida é bom perguntar para aprender, né?) onde é que me expressei mal? Só falei não me ignora mais, faz favor..."
“Não foi isso que você disse! Falaste ‘Não fica mais ignorante’”… Quer dizer, viste que é polícia, é porque não estudou, né?!”
“Oh, afinal o ignorante e aquele que ignora não é a mesma coisa? Vai-me desculpar, sô agente!"
“Aprendam bem o português, Ok?!”
“O português é traiçoeiro. Está a ver só, meu irmão? A pessoa ia só mesmo levar chapadas à toa, é no tal funeral do Camões que já não fomos…”
(II)
“Pronto está desculpado. Mas também qual é a emergência afinal?!”
“É mesmo o Estado de Emergência, chefe!”
“Fez o quê?”
“O chefe está a ver aquele senhor aí de camisa azul? Vim fazer queixa contra o gajo…”
“Mas aqui no quintal do supermercado é para apresentar queixa?!”
“Ele ofendeu o Presidente da República…”
“João Lourenço mesmo? O nosso Comandante em Chefe?”
“É isso, chefe… Pode chamar só já o patrulheiro para lhe levarem em julgamento sumário…”
“Assim estás a sugerir ou a ordenar?! Mas ofendeu o Presidente? Falou o quê?”
“Por acaso não falou nada…”
“Escreveu o quê no facebook?”
“Não sei, chefe, não lhe vi no facebook dele…”
“Mas então ofendeu o Presidente no que tange a quê? Cantou RAP de insubordinação?”
“Não, chefe.”
“Filho da mãe! Mas você fumou cangonha ou o quê?! Não falas coisa com coisa, pá!”
“Me encostou meio metro... Quer estragar a minha quarentena...”
“E no quê que isso ofende o Comandante em Chefe?”
“Então eles não mandaram ficar em casa, lavar todo o dia as mãos com sabão, álcool gel e se dar distância? Esses dias nem namorar com as minhas pequenas estou a conseguir mais...”
“Pronto está desculpado. Mas também qual é a emergência afinal?!”
“É mesmo o Estado de Emergência, chefe!”
“Fez o quê?”
“O chefe está a ver aquele senhor aí de camisa azul? Vim fazer queixa contra o gajo…”
“Mas aqui no quintal do supermercado é para apresentar queixa?!”
“Ele ofendeu o Presidente da República…”
“João Lourenço mesmo? O nosso Comandante em Chefe?”
“É isso, chefe… Pode chamar só já o patrulheiro para lhe levarem em julgamento sumário…”
“Assim estás a sugerir ou a ordenar?! Mas ofendeu o Presidente? Falou o quê?”
“Por acaso não falou nada…”
“Escreveu o quê no facebook?”
“Não sei, chefe, não lhe vi no facebook dele…”
“Mas então ofendeu o Presidente no que tange a quê? Cantou RAP de insubordinação?”
“Não, chefe.”
“Filho da mãe! Mas você fumou cangonha ou o quê?! Não falas coisa com coisa, pá!”
“Me encostou meio metro... Quer estragar a minha quarentena...”
“E no quê que isso ofende o Comandante em Chefe?”
“Então eles não mandaram ficar em casa, lavar todo o dia as mãos com sabão, álcool gel e se dar distância? Esses dias nem namorar com as minhas pequenas estou a conseguir mais...”
(III)
“Ó CIDADÃO, TUDO BEM?”
“Boa tarde, senhor agente...”
“Recebi queixa de que o senhor furou as regras do Estado de Emergência... Procede?”
“Não, chefe. Eu estava na fila direita, aí olho assim, reconheci este aldrabão que me deve dinheiro e anda a me esquivar há cinco anos. Então tentei lhe cobrar...”
“Está a ver, sô agente? Na quarentena é de se cobrar?! A Ministra da saúde falou dois metros...”
“Isso é meu azar!!! E antes da quarentena pagaste o que deves? Agora se o Covid-19 te matar?”
“MAS O SENHOR ESTÁ OU NÃO A FALHAR COM A DÍVIDA ALHEIA?”
“Ele sabe que me deve, chefe. Anda a me fugir há anos. Está com truques. Hoje lhe reconheci.”
“Mas me reconheceste só porquê, se o outro está a usar máscara?”
“Boa tarde, senhor agente...”
“Recebi queixa de que o senhor furou as regras do Estado de Emergência... Procede?”
“Não, chefe. Eu estava na fila direita, aí olho assim, reconheci este aldrabão que me deve dinheiro e anda a me esquivar há cinco anos. Então tentei lhe cobrar...”
“Está a ver, sô agente? Na quarentena é de se cobrar?! A Ministra da saúde falou dois metros...”
“Isso é meu azar!!! E antes da quarentena pagaste o que deves? Agora se o Covid-19 te matar?”
“MAS O SENHOR ESTÁ OU NÃO A FALHAR COM A DÍVIDA ALHEIA?”
“Ele sabe que me deve, chefe. Anda a me fugir há anos. Está com truques. Hoje lhe reconheci.”
“Mas me reconheceste só porquê, se o outro está a usar máscara?”
Gociante Patissa | Benguela, 22 Abril 2020 | www.angodebates.blogspot.com
terça-feira, 21 de abril de 2020
Do escritor brasileiro Francisco Carvalho | "ACÁCIA DOS MEUS QUINTAIS E OUTROS CONTOS MAIS" SAI PELA PENALUX
O escritor brasileiro Francisco
Carvalho e a Editora Panalux, com sede em Guaratinguetá, São Paulo, promovem a
obra “Acácia dos meus quintais e outros contos mais”, que pode ser adquirido
link https://www.editorapenalux.com.br/loja/acacia-dos-meus-quintais .
O autor de “A Estranha Casa do Jabuti Cascudinho”
e “Meu Irmão, Meu Amigo”, disponível para download no formado e-book recorreu
ao Blog Angodebates para ajudar na divulgação.
Sobre o livro Acácia dos meus quintais e outros contos
mais”, Daniel Zanella, editor do Jornal RelevO, escreveu o
seguinte:
“ Um
cheiro de terra molhada, de jardim suspenso no abismo, um jeito de velhas
estrelas e noites longas: Acácia dos meus quintais e outros contos mais promove
um encontro de sensações, dos grandes dramas da vida e do tempo em meio aos
rios pequenos e constantes: “e o relógio parecia mais preguiçoso do que nunca”.
Os 13 contos de Francisco Carvalho apresentam personagens
envolvidos em dramas de variadas gradações, com desconfortos entre existir na
máxima potência e lidar com os pequenos desvios da vida, sempre querendo nos
empurrar para fora, para longe. “Não bastasse a saudade, nunca achei seguro
dirigir devagar, antes de o sol aparecer”. São sentimentos e paisagens,
interiores e horizontes.
As
tensões de Acácia dos meus quintais e outros contos mais expõem um
conjunto de belezas, a literatura como descanso, como motor lírico: “No céu
azul de uma clara manhã de outono, o sol brilhava preguiçoso ao lado de algumas
nuvens brancas que mais pareciam um bando de carneirinhos flutuantes”.
Os personagens de Francisco Carvalho buscam a estabilidade, o
equilíbrio, seja pelo amor, pela fé no divino, pela aproximação sacra de
afetos. São anseios de calmaria, da felicidade dos amores e do crescimento das
novas gerações. É que a vida, nos diz Acácia dos meus quintais e outros contos mais, a vida é também o canto triste dos
pássaros e a mãe afagando o rosto da filha.”
segunda-feira, 20 de abril de 2020
Lançamento em Luanda |“ESCRITOS DE QUARENTENA” DÃO CORPO À COLECTÂNEA DIGITAL
Vários autores e diferentes géneros dão corpo aos “Escritos
de Quarentena”, uma obra literária no formato digital que será disponibilizada
no sábado, 23/04, pelas 16 horas, no site da editora www.edicoeshandyman.com, para saudar
o Dia Mundial do Livro.
Com 52 páginas, o livro conta com textos de
escritores consagrados, entre os quais Cremilda de Lima, João Tala, José Luís
Mendonça e Helder Simbad, ao lado de textos de novos autores. A iniciativa é do
projecto editorial Edições Handyman, criada em 2018 por estudantes do Curso de
Língua e Literaturas em Língua Portuguesa da Faculdade de Letras da
Universidade Agostinho Neto e que se dedica à publicação de e-books.
Conta já com três e-books disponibilizados no site da Revista Palavra e
Arte, sendo eles, Revista O Fio da Palavra, em homenagem ao poeta Lopito Feijóo
(2018), Antologia Poética Digital Nós e a Poesia, em homenagem ao poeta João
Tala (2018) e a novela infato-juvenil A Palanca de Chifres Dourados, de Hélder
Simbad (2019).
(Download actualizado) a pedido de alguns interessados | 2+2 LIVROS PDF GRÁTIS DE GOCIANTE PATISSA (Contos. Literatura angolana)
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segunda-feira, 13 de abril de 2020
Estou a ver que há algo de positivo na forma de reagir à tragédia do Covid-19, que é o recurso à tecnologia para encurtar distâncias, recusar o silêncio, portanto não nos conformarmos. O sonho é que não se esfrie o entusiasmo com o passar da tempestade, não venha a ser o próprio remédio (tecnologia neste caso) a ocupar o lugar da doença, fazendo com que nos acostumemos ainda mais às tecnologias, frias como são, do que às pessoas. Com tudo de ruim e traiçoeiro de que nós os humanos somos feitos, teimemos em não deixar de acreditar no lado mais belo da coisa. Boa noite
domingo, 12 de abril de 2020
Just a question | UM ENFERMEIRO PORTUGUÊS NA EQUIPA QUE SALVOU DO COVID-19 O PRIMEIRO MINISTRO BRITÂNICO
No discurso de gratidão após receber alta, o 1.º Ministro britânico, Boris Johnson, internado por agravamento do seu estado de infectado por Covid-19, ressaltou o serviço nacional de saúde do seu país, em especial dois enfermeiros que passaram 48 horas a cuidar de si, no momento crucial que podia dar tanto para sobreviver como para sucumbir entre eles um português, do Porto, chamado Luís. Este e uma enfermeira da Nova Zelandia tiveram o decisivo papel de monitorar a cada instante o equipamento de ventilação. Não seria demais, digo eu, que a imprensa portuguesa conferisse a este enfermeiro metade do destaque que dedicam ao futebolista Cristiano Ronaldo, considerando que ambos puseram o nome de Portugal nos lugares cimeiros das conquistas. Ou não?
www.angodebates.blogspot.com
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terça-feira, 7 de abril de 2020
Opinião | ABATE DE IMIGRANTES ILEGAIS? NÃO É POR AÍ, EMBAIXADOR NETO KIAMBATA! [actualizado]
O Embaixador Luís Neto Kiambata, proeminente figura da história de luta anti-colonial em Angola, um dos primeiros a liderar a Agência de Notícias Angola Press (Angop) na primeira república, é um fazedor de opinião que muitas vezes bate o seu próprio recorde pela virulência no verbo. No músculo também, literalmente, reza a história. É-lhe atribuído um embaraço diplomático por conta de uma eloquente bofetada por si administrada a um jornalista português, já lá vão décadas. Mas o assunto hoje é outro.
"Será
que os 2 mil Km de fronteira que temos com o Congo Kinshansa (RDC) estão todos
controlados? Acho que não! Eu defendo que aqueles que atravessam a fronteira
ilegalmente e nos expõem ao risco do Coronavirus deviam ser abatidos! É matar,
porque a situação é grave", cito de memoria com elevada repulsa as
palavras do Embaixador Kiambata, proferidas ontem via telefone no espaço da
Televisão Pública de Angola dedicado à conversa com especialista.
Foi a
seguir à Conferência de imprensa para o ponto de situação da Comissão
Interministerial de combate ao Coronavírus, a qual deu a conhecer o registo de
mais um caso positivo de infecção pelo Covid-19, perfazendo 17 casos, dos quais
dois óbitos e duas recuperações. Curiosamente, todos “importados” através de
voos vindos de Portugal e Brasil.
Mais
adiante, o ancião sugeriu às autoridades a adopção da tortura com chicotadas no
rabo de quem trespassar a fronteira. E o que não falta ao diplomata é a ideia bem
clara de como administrar tais chibatadas migratórias focadas nos glúteos: em
público!
Quero
acreditar que tenha sido um pronunciamento a quente e que amanhã já terá um
discurso mais comedido. É de resto o mesmo optimismo com que muitos de nós digerimos
a metáfora do Ministro do Interior, Eugénio Laborinho, quando
confrontado com queixas sobre casos de excessos de zelo por parte das forças ordem,
no contexto do Estado de Emergência. Ao mesmo tempo que se desculpava, o
Ministro cuidou de esclarecer – na verdade desenganar gulosos em doçaria – que a
polícia não está na rua para distribuir rebuçados… e nem chocolates.
Voltando
ao Embaixador Kiambata, não sou propriamente adepto da visão expansionista
segundo a qual a pessoa deve sentir-se pertencente ao lugar geográfico que
goste/ame ou seja do seu interesse, apenas por assim ser. Desde logo porque é
uma narrativa injusta e desproporcional, sobretudo olhando para a história da
humanidade. O mesmo se aplica a qualquer outra proveniência. Se é para cumprir
as leis do Direito Internacional, pois então que assim seja, com todos os critérios
objectivos que regem as nações.
Não posso,
contudo, deixar de manifestar indignação perante uma sugestão tão radical como
esta do Embaixador Neto Kiambata, que pelos motivos óbvios tem
responsabilidades acrescidas na formação da mentalidade e consciência cívica.
Bastaria lembrar que Angola é contra a pena de morte e não se pode fazer
apologia ao abate de seres humanos, nem dentro nem na fronteira.
À
anfitriã do programa, Nadir Ferreira, dou igualmente uma nota negativa por não
ter rebatido logo a opinião do seu interlocutor, demarcando de imediato a
estação pública de uma tal diatribe, quanto mais não seja por se tratar de uma
figura tida como herói nacional (ainda jovem, na era colonial, Kiambata e um correligionário
tiveram a proeza de desviar um avião de
carreira, com tiroteio e tudo, rumo a um dos Congos onde se juntaram a outros
combatentes pela liberdade).
Precisamos
de frieza nas análises e não perder de vista o essencial, nomeadamente a
observância das medidas de prevenção e o repensar das nossas políticas
migratórias.
Repito,
matar para prevenir a morte, em contexto de saúde pública, não faz o menor
sentido.
Gociante Patissa (escritor e jornalista) | 07 Abril 2020 | | www.angodebates.blogspot.com