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Cada vez
que me tratam por doutor (o que por acaso não sou, mas também em nada mudaria
se fosse), carrego a inevitável culpa de não poder – evitando ser deselegante –
dispensar prontamente tal deferência. Ultimamente até nos noticiários, temos
sujeitos com o título académico, principalmente quando detentores de cargos
públicos, muitos dos quais arredondados por excesso, dado que, em termos
concretos, não passam de uma licenciatura.
Aí, resta
ao cidadão acrescer à pilha de "vergonhas colectivas " esta mania do
elitismo. Por que raio tem de ser a frequência universitária parte da nossa
identidade? O indivíduo faz uma chamada telefónica e tu ouves depois do
pigarrear aquele "daqui fala o doutor não sei das quantas", e ficas a
prever no outro lado da linha o emissor a endireitar o nó da gravata ou
eventualmente a tirar o pó do bico do sapato, como se não atendesse às suas
necessidades fisiológicas socorrendo-se dos mesmos órgãos sensoriais que os
demais mortais. E aquelas cenas deprimentes então de estar aos copos em mesa de
bar e nos tratarmos por doutor disto, engenheiro daquilo, arquitecto e bla,
bla, bla?... O lugar da simplicidade qual é mesmo?
De que
adianta a excessiva formalidade se, na realidade, muito do que você precisa no dia-a-dia
é resolvido na relação com o país informal? Os exemplos estão à mão de semear. O
doutor cai no radar por excesso de velocidade e… resolve no momento com o
regulador de trânsito. Tem algum parente doente, recorre a influências para
melhor assistência. É professor mas o poder de decisão no mais elementar, como
a reprovação (ou não) do aluno ou aluna com fraco rendimento escolar, é
condicionado pelo telefonema do degrau acima na hierarquia. E se nos
preocupássemos mais, sob o ponto de vista da ética social, com o funcionamento
eficaz das instituições ao invés de investir o tempo em categorizar indivíduos?
É que já
trabalhei com alemães, belgas, quenianos, americanos, italianos, espanhóis,
australianos, ingleses, franceses, etc., bwé de PhD, alguns até diplomados em
universidades do topo do ranking mundial, e a prática é tratar a pessoa pelo
nome, ou quando muito por senhor/senhora. A propósito de tendências que acabam
por nos elevar ao patamar caricatural, recordo a troça de uma antiga amiga e
tutora australiana, isso no sector das ONG’s por volta do ano de 2006, segundo
a qual é fácil topar um angolano em voos internacionais. E como? Porque é o que
mais se preocupa em se agrilhoar (termo meu) em fato e gravata (onde os demais
procuram viajar em trajes casuais e mais confortáveis), mesmo quando a estação
que os espera no país de destino é o verão.
A nossa
comunicação social é outra promotora do vício, sobretudo no tratamento dado aos
comentadores (residentes ou itinerantes, que por vezes também não acrescentam
nada de novo ao senso-comum), o que indirectamente passa a mensagem de não
haver sabedoria em quem não ostentar um grau universitário. As rádios e
televisões em alguns países que visitei (EUA, Alemanha, etc.) apresentam os
interlocutores pelo nome e função, no que se pode inferir que já se fartaram
dos doutorismos, onde o acesso à universidade é um dever, não uma questão de
luxo e/ou barreira social.
Aqui chegado,
e não sendo ainda eu de andar a pedir favores a governantes (talvez tenha
pedido alguma vez em pequeno na era do partido único e um ano antes do fim da
guerra ao meu próprio pai, mas não me lembro), ou exceptuando a cedência de
salas para lançamento de livros, já na condição de escriba, vejo-me neste
contexto obrigado a abrir uma excepção. Portanto, caro compatriota João Lourenço
(o "president to be", como diriam os anglófonos), faça-nos o favor de
acabar com este "vazio interior" de esfregar o grau académico na cara
da sociedade, ya? Ainda era só isso. Obrigado.
www.angodebates.blogspot.com | Gociante
Patissa | Benguela, 25 Setembro 2017
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