A província de Benguela volta a inscrever, com caneta
dourada, na história da produção literária angolana, um poemário consistente,
«Raízes Cantam», que desponta da segunda década do pós-guerra, cujo marco é o
ano de 2010, da qual o autor faz parte.
Pede-me o Job Sipitali que prefacie o seu livro. Ora, tenho duas boas razões para negar. A primeira é poupá-lo do azar (a única vez que prefaciei um livro no prelo foi há coisa de cinco anos, e nunca chegou a ser publicado). A segunda razão – e a mais forte – é que a obra tem tudo para vingar por si, com uma maturidade estética tão rara em estreantes e que, por isso mesmo, dispensa qualquer empurrão. Agradeço pois a honra e partilho então estas linhas pela consideração que me merece o autor e a riqueza do texto.
«Raízes Cantam», poesia contemporânea congénita, recebe por empréstimo do seu fazedor a relação intensa «cidade-campo», com este último sócio-antropologicamente inconformado na Camisa-de-forças do espaço urbano, onde se viu encaixado à ordem da pólvora. Fica também a interrogação quanto ao que ficou por dizer da parte do autor, tendo em conta as reticências que antecedem e encerram o título de cada poema.
Para um leitor que seja falante da língua Umbundu (onde língua implica a cultura deste grupo etnolinguístico de origem Bantu, que predomina no litoral centro, sul e sudoeste de Angola), será inevitável experimentar a intertextualidade entre a tradição oral e o tricotar alegórico do poeta. Temos isto mesmo em ...A ELEIÇÃO DO VERBO..., onde «Acorda-se o silêncio com o sino rural: cocorocó – cocorocó…/ E uma merenda sobre as brasas do fumo/ ergue os olhos da enxada.» Este vívido rural lembra um cântico que indaga com melancolia: «Kulo ka kuli akondombolo / pwãi kucaca ndati?» (Aqui não há galos / então como é fazem para amanhecer?). De resto, «A escrita rural / voa com o fumo / na chama dos parágrafos», como bem advoga o poema …SÁBIO RURAL…
No poema …FUTURAS PALAVRAS…, temos a enunciação que leva a inferir que a saúde do futuro reside no reencontro com o que há de lição e tradição no passado, na essência griot. «Vão ao serão / não serão / órfãos de palavras. / No serão ouvem-se / palavras circuncisas./ Vão. Não serão órfãos.» Só mesmo a embriaguez de poeta para ainda crer na exequibilidade de uma tal sugestão de resgate, precisamente numa sociedade, como a angolana, que faz culto (institucional, até) à encarnação mecânica de modelos/padrões identitários e civilizacionais que implicam a auto-negação ontológica africana. Mas há que vestir a certeza que o autor pinta na estrofe primeira do poema …VIAGEM…, que abre o livro: «Verdade ou não importa / o imperativo / dos sonhos.»
Atento aos fenómenos, virtudes e degenerações no rumo da
sua sociedade, temos no poema …ADJECTIVO… o desencanto pelo papel do
intelectual moderno, de quem se esperava, vagalume, guiar o seu povo,
intelectual este que, no lugar de defender causas, escolheu defender lados
conforme o charme do aceno. O que resta é que «As almas defendem-se / dos
corpos epistémicos / dos filósofos nos olhos.» Ou, dito de outra forma, «O ex
professo / Carrega consigo / O nacionalismo aurido» (do poema ...MISSÃO…)
Nota-se um distanciamento em relação à tendência dos da
sua geração, aquela nota acentuadamente sócio-realista e declarativa, com
textos prolixos e a passar ao lado do labor estético. Job Sipitali desponta
pela diferença. Traz uma poesia concisa, proverbial e penetrante, enfim um
material esteticamente cozido para saltar da gaveta para as páginas de um
livro. Que desta promissora lavra venham outros e que receba um acolhimento à
altura. Ainda era só isso.
Benguela, Angola, 01 de Julho de 2017, publicado no Jornal Cultura, de 15 a 28 de Agosto de 2017
Job Sipitali apresentou no domingo (30/07) ao público na
Mediateca de Benguela a obra literária de estreia intitulada “Raízes Cantam”.
Com 55 páginas, o formato é de livro de bolso e sai pela editora Perfil
Criativo, com sede em Portugal, que para a primeira edição coloca à disposição
de amantes da leitura 150 exemplares.
Job Sipitali (1985) nasceu no Município do Cubal,
Província de Benguela - Angola. É Bacharel em Linguística-Português pelo ISCED
(Instituto Superior de Ciências da Educação) - Benguela. É membro e co-fundador
da ALCA (Associação Literária e Cultural de Angola), onde exerce a função de
coordenador do distrito de Benguela. Escreve, principalmente, poesia e contos.
…NOÇÃO DE CONCLUSÃO…
Concluo fazendo o tempo: dos homens,
da terra, dos objectos,
das vozes naturais, do silêncio celeste.
da terra, dos objectos,
das vozes naturais, do silêncio celeste.
Mas o tempo não cabe na conclusão
nem nas coisas vitais.
Cabe no Homem.
nem nas coisas vitais.
Cabe no Homem.
O tempo é ele mesmo.
Não tem género.
Sigamo-lo com a escrita não com os pés.
Não tem género.
Sigamo-lo com a escrita não com os pés.
…A GRAMÁTICA E A ZUNGUEIRA…
Corrige-me
o destino
não o pensamento.
o destino
não o pensamento.
Corrige-me o sofrimento não a gramática
que gosta de comer bem com os verbos
e esquece-se dos
pronomes personificados, dos pratos típicos
e quentes da sintaxe.
que gosta de comer bem com os verbos
e esquece-se dos
pronomes personificados, dos pratos típicos
e quentes da sintaxe.
Corrige-me a palavra,
não a polissemia que gosta de ser híbrida.
Corrige-me tudo, menos o pensamento.
não a polissemia que gosta de ser híbrida.
Corrige-me tudo, menos o pensamento.
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