No mais recente romance de Ismael Mateus, Laços de Sangue, o escritor traz uma descrição de lugares e personagens que constituem um verdadeiro retrato sociológico do subúrbio luandense. Editada pela União dos Escritores Angolanos, a obra propõe-se oferecer reflexão e debate sobre os altos e baixos na relação social, com enfoque para as aparências, sem perder de vista a família enquanto base da sociedade.
Vejamos por exemplo um pretexto de ilustração de lugar (pág. 23, 1º parágrafo do Cap. 2):
“Os negócios de venda de ginguba e bombó proliferam. Não tanto como os da cerveja e vinho, mas expandiam-se todos. Há um sistema de interdependências. A cerveja e o vinho levam à ginguba. Ou o contrário. A pobreza ajuda o alcoolismo. O consumo faz amizades. As amizades levam ao consumo. E assim proliferava o negócio no bairro. Os hábitos de consumo marcavam os ritmos diários. Os mesmos becos, as mesmas saudações, as mesmas horas, os mesmos locais de paragem, as mesmas cervejas, os mesmos vinhos e as mesmas conversas. Uma mesmice de vida agarrada ao vício. Um quintal de chapas, cinco mesas de plástico dispostas sem critério estético. Cadeiras de cores diferentes à espera dos próximos ocupantes. Restos do último cliente. Um amontoado de grades de cerveja. No dia seguinte passa o distribuidor. Depois vêm, outra vez, os clientes. E, outra vez, o distribuidor, mais as cadeiras, a ginguba, o vinho, os clientes e as mesmas conversas. É a vida sem vida”.
Neste pedaço da narrativa, mantém-se a acção sem recurso a personagens centrais, mas apenas num bem conseguido jogo de elementos que ora se mostram causa, ora efeitos, e o fechar da cortina com a curta e fatal exclamação velada: “É a vida sem vida”. A produção nacional, aqui representada por ginguba e bombó, não consegue ombrear com o importado (cadeiras plásticas), ou por um outro prisma, enquanto o consumo de álcool é grande, já a comida, que contra-balancearia pelos nutrientes, não passa de petisco. A manutenção do quadro de "quase-doença" é fomentada por um agente externo ao meio, o fornecedor.
Outro exemplo está na descrição de personagem (pág. 24, parágrafos 1 e 2):
“(…) Dizem, muitos dizem, que Petit foi educado no beco. Criança recolhida. Pouco dada a amigos. Um adolescente ainda pior. Contavam-se histórias. A cada testemunha, uma versão. “Sempre foi de poucos amigos. Nunca brincava fora de casa. Por isso, nem mesmo os da sua idade, se lembram dele. Só os mais velhos, muito poucos mesmo, que se diziam chegados à família, se lembravam dele com detalhes de que mais ninguém se lembrava”.
Petit fez-se um alfaiate, um bom alfaiate, dizem, a julgar pelas encomendas. Gente de jeeps e carros de alta cilindrada chegava às horas mais impróprias. É um artista. Os artistas não são comuns mortais. Fazem tudo ao contrário. Dormem de dia. Trabalham à noite. Sonham em realizar sonhos. Acreditam no trabalho por inspiração. Petit era um artista. Inspirava-se à noite. Sonhava. Dormia de dia. Vivia exclusivamente dedicado aos costurados. Corte e costura. Sem sair de casa. Sem se mostrar aos vizinhos. Sem ir aos jogos do Progresso. Sem sequer sair para comprar ginguba ou cerveja. Apenas corte e costura até ao nascer do dia”.
Petit encaixa-se no estereótipo de personagens da vida real na ribalta com etapas queimadas, ou como escreveriam outros que antecedem Ismael, daquele tipo que compra passado para impor um status quo. A diferença reside entretanto no facto de Petit não ser da cidade, mas suscitar uma intensa proximidade de classes sociais, só que “em horas impróprias” (seriam escusas?), podendo-se inferir que há um comércio mais “universal” do que alfaiataria. E ao estilo de bom sociólogo, o narrador denuncia e aponta pistas sem impor conclusões, deixando espaço para outros estudos mais profundos no quadro da interdisciplinaridade.
Fica aqui o convite para mergulhar nas 178 páginas desta 1ª edição lançada em 2010.
Ismael Mateus, angolano jornalista há três décadas, está emprestado ao Ministério da Administração do Território. É membro da União dos Escritores Angolanos, tendo sete obras publicadas – entre poesia, crónica, ensaio, conto e romance.
Gociante Patissa
Benguela 31 de Maio 2011
8 Deixe o seu comentário:
quantos i.mateus gostariamos de ter...?
asg
Oi, Patissa.
Gostei muito dos trechos do livro do Ismael Mateus. E também de sua análise.
Sabe, tenho lido seus textos nos dois blogs, não fico comentando para não deixá-lo enjoado com minha presença.:)
Mas tenho gostado muito.
Abraços.
Olá, vim conferir o blog.
Excelente matéria.
Abraço
Oi ASG, de facto cada artista é pouco para enaltecer nossa cultura. um abraço
Oi Lita, aqui a visita é como a amizade, não enjoa. Consuma o máximo que puder e não tenhas receio em interagir. Estamos cá esperando por si. Abraços de Angola
Caro Freitas, fico feliz que me tenha descoberto e agradeço. Por favor, ajude-nos a divulgar esse espaço. Volte sempre. Abraços
Amigo Patissa,
Que grande "interpretação".
Quando eu lançar o "Manongonongo" tb quero uma leitura apurada de tua parte.
Um abraço e, os meus pêsames!
Confrade Canhanga, colocamos a sensibilidade à disposição do texto. Venha o teu também, mano, e a gente partilha o sentir na base do já habiual autodidactismo.
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