Gosto particularmente de escrever-te, porque sinto que me remetes sempre aos nossos tempos de adultos forçados pela conjuntura, anos em que a luta para ser alguém na vida (trabalhando ou esforçando-nos para tirar notas altas na escola) nos retirava o direito de sermos adolescentes “normais”, como qualquer outro da nossa idade.
Perguntas sobre muita coisa cá da banda, mas é sempre difícil apresentar um retracto de uma localidade em que se reside há tantos anos e com a qual temos uma espécie de amor eterno. Primo, azar teu de não poderes ainda regressar!
Perguntas sobre muita coisa cá da banda, mas é sempre difícil apresentar um retracto de uma localidade em que se reside há tantos anos e com a qual temos uma espécie de amor eterno. Primo, azar teu de não poderes ainda regressar!
Angola não tem outra escolha senão gerir o processo de paz que se acentuou com o calar das armas, numa altura em que se mobilizam sinergias para a reconstrução nacional, desde o discurso até ao alicerce. E por falar em alicerce, tu não vais acreditar. Não é que agora a pessoa dorme e, ao acordar, o terreno que era de todos no Bairro já pertence a um desses empresários “do tempo de paz”!? A moda é placas e estacas: isto pertence ao prato, aquilo pertence ao garfo, futuras instalações do abacate… enfim, uma salada russa! E lá vão, de chineses à mão, erguendo paredes que traziam na consciência, às vezes asfixiando a dignidade humana e valores antropológicos.
Você nunca foi de fraca memória, primo, por isso ponho a mão no fogo em como não se esqueceu do nosso “Kacipaio”, aquela casa cantoneira amarela entre Lobito e Catumbela, a dos guardas Kamigui e Nguendo, do velho Napokwenhe, da cana cascada. Não é que certo bem-intencionado, concluiu que a reconstrução nacional consistia em aplicar um belo alicerce no caminho que saía do Vikundo…! É impressionante, primo, mas vinte anos depois de passares por um caminho deixado inclusive pelo colono e pela falida Açucareira 1º de Maio, com estacas e arame farpado alguém atira p’ro esgoto o passado do nosso místico Kambanjo e de sua gente, que via no acesso à linha 11 um recurso para emergências, para já não falar de funerais.
Mas vou te falar, primo. Mando esta carta escrita em papel, porque essas coisas que me obrigas a usar para substituir uma missiva regular retiram uma certa magia. É como digo, não é mesma coisa…! Hás-de concordar comigo que nada substitui a ansiedade que aumentava quanto mais perto a pessoa chegasse dos CTT, a fim de ver se caiu algum correio na caixa postal. Lembro-me de como recebíamos com emoção cartas de vários pontos do mundo, celebrando cada resposta, fosse ela de instituições ou de pessoas singulares, as quais considerávamos automaticamente nossas amigas. Prazer igual não nos dará jamais a sua amante Internet.
E não era só isso. Quando você me falou de táxis que levam porta à porta ali na sua Europa, lembrei-me que aqui também já temos serviços do género – é claro, sem gravata nem ar condicionado. Mas táxis mesmo, meu caro primo, com forte componente envolvente contam-se aos dedos e já não se fazem como antigamente.
Lembro-me bem da tua cara de adolescente emocionado cada vez que apanhássemos os nossos Kalumba-Catumbela, viaturas que marcaram a história socio-económica da província de Benguela. Estás a ver as Peugeot’s do Passos, do Chiquinho da barba branca na via da Baia Farta? E as Bedford’s então de João Vazio, do Liambandino (Diamantino), do velho Mussungo, Sr. Vieira do Bairro da Luz, velho Chico Queima-Vela (que buscava frutas em Muhaningo no Dombe-Grande), e o Pangulula com a sua Chevrolet “verde sem cor”.
Pode dizer que a idade avançada dos veículos terá contribuído para vários acidentes, mas não nega que acidentam também carros que nem chegam a tirar a rodagem ou pagar o crédito. Crescemos, sim, nos candongueiros que travavam com água de sabão, e não me venhas com essa dos airbags, que te vou lembrar do Sambapito, a Bedford verde cabina avançada sem pára-brisas, cuja buzina era um apito germânico que o motorista trazia à boca o dia todo. Veículos que, não fosse a distracção dos investigadores, mereciam entrar para o Guiness, o livro dos records.
Já agora, deixa dizer que dentro de uma hora estarei a lamber selos nos Correios para colá-los no envelope, milímetros acima do teu endereço. E não precisarei do serviço expresso nem registado, porque a rapidez de que te gabas nos teus e-mails e chats, também acompanha os serviços de correio postal. Dentro de uma semana receberás a carta, de punho próprio, no teu apartado.
A “tua” Internet e o avanço das tecnologias de informação e comunicação, chegados ao alcance de uma sociedade consumista e escrava da moda, vão “destruindo” práticas como a correspondência que, para além da utilidade objectiva de promover a comunicação, também permitia o aperfeiçoamento da arte de redigir uma carta e da caligrafia. Com tristeza, ao passar pelos correios da Catumbela, do Velho Tchimuco (já falecido), o cenário é de muitas caixas postais encerradas. A Catumbela, primo, hoje já não corresponde...!
Gociante Patissa (Outubro/2007, In Boletim "A Voz do Olho", projecto informativo, educativo e cultural da AJS-Associação juvenil para a Solidariedade, ONG, no Lobito)
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Que saudedes sinto das boleia no BEDFORD do Kota Santos Kangando...
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