Não podia esta crónica abrir sem expressar condolências sentidas às vítimas do surto de Cólera na periferia de Luanda, bairro Paraíso, município do Cacuaco.
Quando chove cada morador sabe onde lhe dói. No cacimbo também. Luanda é mesmo assim. Há séculos. Uma espécie de picante na língua, o seu doer é ao memo tempo o seu prazer. E a cidade cresce dentro e fora, nas paredes foguetão, na prece ubíqua, natalidade galopante, nas falas que mesclam o mosaico sociolinguístico bantu com o eixo português, mas não um qualquer português. Aqueele noosso, livre e solto da norma, da maiúscula, vogal fechada. A capital é nota dissonante, o bolso do agente que volta meio-cheio ao fim do dia a casa sem causa justa, a passadeira que só reconhece prioridade ao carro.
Luanda é também, como de resto faz crer em qualquer esquina, lugar temente, viveiro de fé e de esperança, fábrica de igrejas, profetas e religiões em série ante a sonolência da régua. Não é insólito que em pleno consultório médico o profissional salte da anamnese para a conversão do aflito paciente. Só que depois há o anoitecer que tudo desmente, o boletim policial na TV não podia ser mais carregado, criminalidade que não lembra o próprio diabo. Enfim. Dialoga-se bem com o Brasil e o Congo neste aspecto do marketing da fé, tanto cristo vendido, para tão pouca multiplicação da bondade, do bom senso.
Há uns anos um amigo de cá relatava jocosamente algo assim. Você a caminho do local de adoração com o seu Jeep, o outro motorista também com o Starlet dele bem podre raspa no teu carro. Aí vocês descem dos carros nos vossos fatos e gravatas. Vai para aquilo da tua mãe! Vai tu também! Normalmente. Depois cada um segue o seu caminho da igreja.
Por estes dias, tendo a consultar ainda mais o aplicativo de meteorologia no telemóvel (a pensar no melhor lugar para o carro e evitar a tampa defeituosa do ramal de esgotos, que cede à pressão e inunda o parque). Para hoje, dava 75% de probabilidade de chuva, por isso apressei-me a ir comprar frutas ao supermercado.
No caixa, à frente ia um grupo de chineses. Chegada a minha vez, saúdo. A senhora corresponde e logo atira: Eu gosto muito quando Deus opera maravilha! (Fiquei contente ao ouvir isso, imaginando alguma notícia do tipo Angola saldou de vez a dívida pública para com a China e já podemos contrapor os excessos decorrentes dessa relação com efeitos colaterais esclavagistas e mafiosos). Como?, insisto. Já viste que de manhã havia tanto calor e tanto sol que ninguém ia pensar na chuva, mas de repente escureceu, Deus operou maravilha? Contive-me para não retorquir que já ontem a tecnologia grátis previa essa chuva. Ora, na era digital a fé alheia à tecnologia se calhar contraria o “orai e vigiai”.
Gociante Patissa | Luanda, 18 Janeiro 2025 | www.angodebates.blogspot.com
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